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Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*


"(...) No fundo da prática científica existe um discurso que diz: 'nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar' (...)"

"(...) Mas achamos também, e de forma tão profundamente arraigada na nossa civilização, esta ideia que repugna à ciência e à filosofia: que a verdade, como o relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de embosca-la e a habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares, privilegiados, não só para sair da sombra, como para realmente se produzir" 

"(...) Se existe uma geografia da verdade, esta é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la (...)"

"(...) Pasteur não só e simplesmente mostrou que não cabia ao médico ser o produtor da doença 'na sua verdade', mas que por ignorá-la tinha sido por milhares de vezes o propagador e o reprodutor da doença. O médico de hospital, indo de leito em leito, era uma dos agentes mais importantes do contágio. Pasteur golpeava assim os médicos, neles causando uma formidável ferida narcísica que lhe foi dificilmente perdoada. As mãos do médico, que deviam percorrer o corpo do dente, o palpar, o examinar, estas mãos que deviam descobrir a doença, trazê-la à luz e mostrá-la, Pasteur as designou como portadoras do mal (...)" 

"(...) Antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo; podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extremas ou perigosas (...)"

"(...) os lugares reconhecidos como terapêuticos eram primeiramente a natureza (...) As prescrições dadas pelos médicos eram de preferência a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade (...) Outro lugar terapêutico usual era o teatro (...) apresentava-se ao doente a comédia de sua própria loucura colocando-a em cena, emprestando-lhe um instante de realidade fictícia (...) por meio de cenários e fantasias (...)" 

"(...) a loucura é percebida menos com relação ao erro do que com relação à conduta regular e normal. Momento em que aparece não mais como julgamento perturbado mas como desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre (...)"

"(...) O poder do médico lhe permite produzir doravante a realidade de uma doença mental cuja propriedade é a de reproduzir fenômenos inteiramente acessíveis ao conhecimento (...)  Charcot produzia efetivamente a crise de histeria que descrevia (...) O médico transmitia as doenças que devia curar (...)"

"(...) Basaglia: 'a característica destas instituições (escola, fábrica, hospital) é uma separação decidida entre aqueles que têm o poder e aqueles que não o têm' (...) aquilo que estava logo de início implicado nestas relações de poder, era o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura (...)"

"(...) A desmedicalização da loucura é correlata deste questionamento primordial do poder na prática anti-psiquiátrica (...) É possível que a produção da verdade da loucura possa se efetuar em formas que não sejam as da relação de conhecimento ? Problema fictício, dirão, pergunta que só tem seu lugar numa utopia. De fato, ela se coloca concretamente todos os dias a propósito do papel do médico, do sujeito depositário do estatuto do conhecimento, no trabalho de despsiquiatrização (...)"

*Michel Foucault in "A Casa dos Loucos - Microfísica do Poder". Ed. Graal/RJ. 1990.

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