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Mostrando postagens de janeiro, 2024

O Avesso do Avesso*

Às vezes, há instantes que – como respirações suspensas e eternizadas pelo tênue ar que mantém a fugacidade do momento – traduzem os infinitos que nos compõem e transpiram a vitalidade da essência de que somos feitos, como se conseguissem concentrar num átimo toda a potencialidade da existência. Momentos assim são como pérolas escondidas em conchas vigorosas que resistem em se revelar, temerosas de que seu valor jamais seja devidamente apreciado.  E, no entanto, expressam uma preciosidade que não pode ser transposta na insanidade da realidade que ofusca e que muitas vezes nem mesmo se percebe. A vida é mais do que o avançar do tempo, muito mais do que o contar dos batimentos. A vida não se esgota e não se permite rótulos, embora as vendas se acumulem nos olhos de quem se recusa a verdadeiramente engolir a pílula vermelha... cor do sangue de que nos alimentamos, da maçã que nos incita a não resistir tanto às tentações, da vibração que nos mantém aquecidos e atentos ao instante seguinte.

O Ser Humano é a Medida de Todas as Coisas*

Filosoficamente, esta frase foi combatida por Sócrates no diálogo Teeteto, que lida com o conhecimento ou aquilo que é conhecimento, que em filosofia chamamos de epistemologia, ou seja, o estudo sobre o que é o conhecimento e como justificá-lo. Fundamentalmente, conhecimento – episteme – é diferente de opinião – doksa. Para que possa haver conhecimento, como dirá Aristóteles anos mais tarde depois de Sócrates, a investigação há que se fundar em algo que seja universal e firme, pois não se faz ciência de opiniões e de casos particulares ou singulares. Pois um dos aspectos fundamentais do conhecimento é sua comunicabilidade. Se aquilo do qual temos ciência, se desvanece em minha própria subjetividade ou se desfaz logo depois de eu ter tido “contato” com ele, então é incomunicável, não replicável e influenciado pelas contingências ou da minha subjetividade ou das circunstâncias ou do próprio acaso. Por isso, neste diálogo, Sócrates combate esta frase de Protágoras, o maior sofista c

A Terra se move? Considerações da filosofia e da filosofia clínica*

  Em 1934, Edmund Husserl escreveu um texto intitulado “A Terra não se move. Investigações básicas sobre a origem fenomenológica da corporeidade, da espacialidade da Natureza no sentido científico-natural primeiro. Necessárias investigações iniciais” (trad. livre). Não se trata, como se pode inferir apressadamente, de uma negação do movimento da Terra, da ciência moderna, muito menos de um terraplanismo ou alguma bobagem dessa ordem, tão vigente em nossos dias. A proposta husserliana é nos fazer pensar nossa experiência originária (no sentido ontológico) da Terra. Sob o ponto de vista da ciência, sabemos diversas coisas sobre nosso planeta e o universo: está em um Sistema Solar, na Via Láctea, é um corpo ao lado de incontáveis outros e possui movimentos de rotação e translação.   Mas, a fenomenologia filosófica nos leva a experiência originária, às nossas referências imediatas a partir das quais nos guiamos, vivemos e somos. Nessa experiência imediata, a Terra é um ponto imóvel q

A arte de ouvir*

Querido leitor, que você esteja bem. Hoje vamos refletir sobre um texto oportuno de Rubem Alves: “Saber Ouvir”. De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado: “No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio.” É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Diz Rubem Alves: Quem fala muito não ouve. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as vozes do silêncio. Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para, por não haver o que dizer, tratamos logo de falar qualquer coisa, para por um fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para

Poéticas do amanhã*

  “Antes eu era transparente, agora sou cheio de cores.”                     Arthur Bispo do Rosário   A inédita conversação nos recantos da palavra delirante possui característica de anúncio. Sua perspectiva de grande abertura oferece derivações a insinuar vontades e perseguir refúgios existenciais. Uma filosofia dos devaneios sugere novas menções. O hospício cotidiano, esse lugar legitimado por força de lei, atualiza seu discurso em paradoxos com olhares desfocados. Enquanto a enfermaria multiplica a fenomenologia dos delírios, o lugar reinventa a camisa de força da normalidade e persegue os poetas enlouquecidos pelo não-dizer. No caso da vírgula contida nesses atalhos, dizeres desconsiderados prosseguem em rituais de ilusão. Sua estrutura significante faz referência aos incríveis vislumbres, numa palavraria sem sentido aos endereços já superados. A condição de miserabilidade física do sonhador medicado faz reverência à medicina dos enganos. Essa como ciência da correção di

Para ler e compreender*

  Amigos, não basta saber ler para compreender um texto. Para absorvê-lo mais ou menos inteiramente, é preciso conhecer o campo de sentidos em que foi escrito. Isto é: o domínio da língua não se esgota na leitura e na escrita proficiente. A língua é composta por muitas linguagens que se inscrevem em diferentes regiões hermenêuticas. Ao transitarmos por um texto escrito numa região hermenêutica desconhecida, encontramo-nos numa situação de analfabetismo simbólico; não o interpretamos corretamente porque desconhecemos os complexos nos quais os seus símbolos se relacionam. Estamos como que diante de um texto escrito noutra língua, uma língua ignorada. Todavia – e aí está a tragédia –, acreditamos compreender o lá está colocado, porque sabemos o significado ordinário daquelas palavras. O exercício intelectual mais difícil é o reconhecimento da própria ignorância: se somos capazes de ler todas as palavras de um texto, como podemos chegar à conclusão de que talvez não o compreendamos?

A escuta compreensiva na clínica filosófica*

Ao iniciar essa análise faço um convite a você, caro leitor. Partirmos da noção de singularidade como pressuposto para que possamos, juntos, seguir no progresso deste estudo. De maneira breve a singularidade, na Filosofia Clínica, é um conjunto de fenômenos que compõem o partilhante e sua medida de relação e interseção com o mundo interno, externo e, também, com outras pessoas. O esperado é que o Filósofo Clínico mantenha- se despido de seu juízo e valor pessoal. Por sua vez, essa atitude propicia um ambiente onde aquele que compartilha sua história pode ser conhecido através de seus próprios critérios. A escuta realizada na prática terapêutica prevê a literalidade, ou seja, aquilo que é dito deve ser compreendido e não interpretado. O ser humano singular é o mar por onde o filósofo clínico navega. É dentro das condições apresentadas por este mar que se manifesta a Filosofia Clínica. Articulando os elementos citados acima cria-se uma atmosfera que protege o partilhante. Constitui-se o

Investigação das águas*

  “A imagem mental é a imagem que é descrita quando alguém descreve sua imaginação”. (Wittgenstein) Comer todas as palavras e certezas de palavras, vãos em muros, filamentos do tempo, a história, paixão e fome dos olhos, diafragma da alma, um escape de som, uma luz entre os corpos, um resto de palavras, o som quase silêncio entre o medo e a revelação, a fome do desejo nas paredes do tempo, e o corpo abundantemente dança em luz que suaviza os movimentos, o som perdido entre os livros, uma letra entre as letras, a formação de nuvens no outono, o céu se fecha, os olhos de sal, mareados, o instante final do esquecimento desaparece entre os restos dos dias, afasia da desrazão em águas profundas, um mar de realidade, um revestimento encobrindo a palavra, a claridade na luz do sol cortando o revestimento, o emergir. De volta. É como trazer as palavras e o corpo de volta à superfície. E os braços em longos, demorados movimentos, chapinhar entre plantas submersas, mistura de cansaço e carpas pa

Por que precisamos de um porquê?***

  O paraíso mora dentro de uma caixa de brinquedos. A partir de qual idade crianças passam a ceder espaço em suas vidas despreocupadas, deixando de lado os brinquedos, para tentar entender a utilidade das coisas? O que acontece em suas cabeças que as faz virar a chave e abdicar de uma vida lúdica e prazerosa para começar a se interrogar sobre o funcionamento do mundo que as cerca? Serão os adultos, preocupados com a educação infantil, os responsáveis por lhes roubar o paraíso ou faz parte da evolução natural da espécie humana a curiosidade e procura de respostas? Inesperadamente, de supetão, crianças passam a fazer perguntas sobre tudo, mas nem todas as respostas cabem num adulto. Filósofos e cientistas estudam e trabalham na busca das causas, efeitos, motivos, razões, porquês, respostas. São mentes interrogativas, olham as coisas sempre com uma pergunta latente, uma investigação, um estudo a ser realizado. Lógica e razão norteiam suas pesquisas. Necessariamente não fornecem nem

Inconsciente?*

Em livro de sua tese de doutorado, Denise Maria de Oliveira Lima, Diálogo entre a Sociologia e a Psicanálise: o indivíduo e o sujeito, no capítulo 2 Sociologia e Psicanálise, ela escreve que a psicanálise representou segundo Freud – no texto Uma dificuldade da psicanálise – a terceira ferida narcísica da humanidade, sendo as outras duas uma provocada por Copérnico ao descobrir que a Terra não era o centro do universo e a outra por Darwin ao dizer que o homem/ser humano procede da escala zoológica e não de Deus. A psicanálise, com sua terceira ferida narcísica, derrubava a razão e a consciência do lugar inabalável em que se encontravam, ao fazer da consciência um mero efeito de superfície do inconsciente. A consciência, então, não é lugar da verdade, mas da mentira, do ocultamento, da ilusão, da distorção. […] A determinação do inconsciente quer dizer o seguinte: longe de sermos senhores do nosso pensamento, somos habitados por outro que pensa em e por nós. Nossas escolhas também são de

Mais um**

Sinta a maciez no contato físico das mãos e dedos sobre o papel agradável de cada folha, nas páginas do mais recente livro de Hélio Strassburger. Um convite às sensações, Filosofia Clínica e Literatura: Conversações oferece, como submodo, um percepcionar. Em direção às ideias complexas, imagino esse livro sendo lido, no toque, em braile, pelos dedos de um leitor desprovido da visão física dos olhos. Um livro de sinônimos. Se “sinônimo de amor é amar”, conforme música de Cláudio Noam e parceiros, sinônimo de sensações é ler! A leitura do trecho em que o autor diz que “É possível exercer uma atividade dessa natureza [papel existencial] mesmo ao distorcer a expressividade.”, causou um estranhamento e fez pensar na palavra “expressividade”. Ao continuar a leitura, tive minha compreensão do termo como tradução de singularidade. Daí a intuição de que esse texto do Hélio (não apenas esse) é um livro de sinônimos. Sinônimos como tradução, outro submodo bem característico nas obras deste au

Atento à singularidade*

  Pode ser incômoda a ideia da singularidade proposta pela filosofia clínica. Mesmo entre filósofos clínicos e estudantes há a possibilidade de uma inclinação para generalizar algum comportamento a ser adotado ou um idealizar um fim a se alcançar para a obtenção do bem-estar subjetivo. Reconhecer cada pessoa como única, requer a aceitação de que para cada uma delas as orientações de vida são irrepetíveis e a fonte onde se encontra os parâmetros é a própria pessoa atendida. Os filósofos clínicos levam suas vidas com suas verdades, emoções, princípios etc. Porém, quando está diante de um partilhante, seus juízos sobre como viver, seus valores, como vê o mundo etc. devem ficar suspensos. Um processo no qual o terapeuta busca compreender a pessoa a quem atende com um mínimo de mácula de suas próprias verdades. Lembre-se de que não há uma negação de um referencial objetivo. As diferenças provém da experiência de cada pessoa em relação aos elementos internos e externos. Não há um só modo

Literatura - na vida e na clínica*

Relação continuada que sobrevoa ideias complexas e aterrissa em sensações, a nossa e a dos livros. Quem já não capturou ou se deixou capturar pelas emoções, até dos jargões neles contidos. Galeano, no enfrentar silêncios para recuperar o não dito, é danado. Ele nos faz reverberar em outro plano, flexibiliza o fadado. Momento do devaneio poético, diria Bachelard. De tanto concentrar para ordenar imagens - como plantas, necessitam de terra e de céu - o imagético enlaça o simbólico e encontra novos imaginários. Jung, Campbell... O escarcéu. Utopia... Por intermédio dos livros exercitamos maneira nata, em seus mais diversos gêneros, de enxergar a nós mesmos e até manejar circunstância que mata. Distopia... As pessoas no Pessoa acordam outras em nós. Qual a sintonia... Termos agendados no intelecto partejando ideias... Ressignifica e marca autogenia. Navegar Camões nos arrebata. Ora pela tormenta que clama por sonhos. Ora pela calmaria que suspende a vida que a nós se ata. Clarice é seca pa

Expressividade*

Não! Não renuncio à vida. Não vou seguir atirando na sarjeta cada sagrado segundo desta breve viagem, nas mãos da racionalidade, civismo e bom senso excessivos... O que de selvagem me restou travestiu-se na fôrma da ignomínia.   Todavia, o fogo que arde no âmago das profundezas da vera essência, derrete as tolices formais e devolve a verdade imprecisa, pura, inocente. E só assim há coerência; o que não há no medo, nem na medida. O que não há na causa, nem no efeito. O que não há no tempo, nem no espaço. Coisas essas, que somente existem na opressão em que nos afogamos por nossos próprios meios. E tampouco neste asqueroso âmbito temos qualquer mérito ou recompensa. Escravidão, escravidão! Cegueira, cegueira, coletiva cegueira!!! Se liberdade não há, que ao menos não haja o grilhão. Gênero? Instituições? Moral? Formação? Modelos de aparência e conduta? A quantas chaves mais deveríamos nos trancafiar num cotidiano oco, padrão, robótico, mecânico, eletrônico, com o controle remoto nas mãos

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