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Inconsciente?*

Em livro de sua tese de doutorado, Denise Maria de Oliveira Lima, Diálogo entre a Sociologia e a Psicanálise: o indivíduo e o sujeito, no capítulo 2 Sociologia e Psicanálise, ela escreve que a psicanálise representou segundo Freud – no texto Uma dificuldade da psicanálise – a terceira ferida narcísica da humanidade, sendo as outras duas uma provocada por Copérnico ao descobrir que a Terra não era o centro do universo e a outra por Darwin ao dizer que o homem/ser humano procede da escala zoológica e não de Deus. A psicanálise, com sua terceira ferida narcísica, derrubava a razão e a consciência do lugar inabalável em que se encontravam, ao fazer da consciência um mero efeito de superfície do inconsciente.

A consciência, então, não é lugar da verdade, mas da mentira, do ocultamento, da ilusão, da distorção. […] A determinação do inconsciente quer dizer o seguinte: longe de sermos senhores do nosso pensamento, somos habitados por outro que pensa em e por nós. Nossas escolhas também são determinadas inconscientemente. E se não somos livres, é a partir desta constatação da não-liberdade que fundamos a sua possibilidade, ou seja, ao aceitar o desafio dessa liberdade restritiva, podemos determinar algo de nosso destino, com responsabilidade e certa liberdade – sendo que esta última é conquistada.

Até aqui, as palavras da autora. Avancemos.

Agora, duas questões: 1. sobre a “descoberta” do inconsciente e 2. sobre a liberdade a partir da noção restritiva da não-liberdade.

Dentro das feridas narcísicas que coloca Freud, no sentido de afrontar e derrubar nosso valor maior como pessoas autônomas, autodeterminadas e com autodomínio através da razão, portanto ferir quase mortalmente nosso egocentrismo, as duas primeiras feridas às quais ele menciona são do campo da ciência: um da física e outra da biologia.

Tanto a comprovação de Copérnico quanto a de Darwin se dão no âmbito da ciência, de experimentações e hipóteses que têm como juíz último o real, mesmo que ambas as feridas tenham se dado em muito maior grau no âmbito da religião do que do senso comum e que ainda sejam combatidas até hoje por religiosos ortodoxos e negacionistas da ciência e dos fatos em geral. Mas este combate não nega nem apaga os fatos, o sol é o centro de nosso sistema solar e não somos criaturas que viemos à imagem e semelhança de algum Deus, mas temos ancestrais tão animais quanto nós mesmos (Aliás, explica muito mais nossas atitudes humanas irracionais e até desumanas se aceitarmos a evolução a partir de um ancestral comum dos macacos do que a partir de uma figura divina!).

Neste sentido, a “descoberta” do inconsciente não é científica como as outras duas. Não há como “provar” a existência do inconsciente como se prova as outras duas. Não há como experimentar a “descoberta” do inconsciente como as outras duas. O que se tem na “descoberta” do inconsciente é uma teoria explicativa do real a partir de suas regularidades observadas atentamente e pormenorizadamente por Freud. Isso se chama “indução” e uma indução não prova uma verdade ou um conhecimento, mas afirma que dadas tais e tais regularidades, pode-se chegar a tal conclusão. Em termos lógicos, a indução tem validade exata na proporção da totalidade dos fatos observados ou constatados. Uma indução, nos diz Edmund Husserl, funda no máximo a probabilidade de algo, e não sua própria verdade ou validade.

Obviamente que a psicanálise foi uma ruptura na forma de pensar as questões existenciais humanas, mas não fundou uma “verdade” como as outras duas feridas narcísicas. Pela sua novidade e força apaixonada de Freud e sua capacidade de escrita sobre a psicanálise e o inconsciente, esta teoria tomou forma, corpo e força e é um divisor de águas em como até hoje em dia as pessoas se veem e se percebem a si mesmas.

Muitos autores de outras disciplinas usaram o conceito de inconsciente, revolucionário, em suas teorias sobre outros âmbitos, como Lévi-Strauss em sua antropologia. Mas isso não é prova de sua “verdade”. O inconsciente não é um “fato”. É uma teoria explicativa que, nas observações segundo a perspectiva de quem acredita no inconsciente, acaba por elucidar alguns fenômenos à luz desta teoria. No entanto, isso acontece com qualquer teoria que de alguma forma interprete o real. Se nos colocarmos na “lente” do inconsciente encontraremos elucidações sobre o real.

Com qualquer teoria filosófica – mais ou menos robusta – acabaremos tendo essa impressão. Podemos perceber as relações humanas através das virtudes aristotélicas, ou através das relações de poder do Estado como Hobbes ou como uma luta de classes como Marx ou como um contrato social implícito como Locke etc. Podemos ver a natureza humana pela “lente” de Jean-Jacques Rousseau e onde todos somos bons por natureza ou através de John Locke onde somos uma página em branco a ser construída na experiência. Todas, de alguma forma, nos darão explicações plausíveis de como funciona o real ou o ser humano e podemos, através de suas lentes, compreender o que se passa na realidade. Mas qual tem a verdade absoluta sobre as relações humanas sociais e o ser humano? Bem, aí é que as coisas se complicam.

O mesmo acontece com a psicanálise e as outras teorias para tentar compreender o comportamento humano. Isso não é desmerecer a psicanálise, mas é somente colocá-la em seu patamar, um pouco abaixo do que pretendia Freud e seus seguidores. Pois há muitas outras teorias explicativas sobre o comportamento humano que não partem do inconsciente e também são esclarecedoras a respeito de algumas características humanas e comportamentais. Já dizia Sócrates que a quantidade de pessoas que acreditam em uma coisa não a torna mais verdadeira, nem quando poucas pessoas acreditam em algo, torna isso uma falsidade.

A outra questão, sobre a liberdade a partir da noção restritiva da não-liberdade, ou seja, primeiro temos que aceitar o inconsciente como um “fato” para depois então podermos trilhar a saída de sermos servos dele. Assim muitas religiões e filosofias declararam antes, na história. Epicteto mesmo dizia que temos que aceitar a força dos fatos externos a nós com uma resignação positiva de que tudo o que acontece por obra de Zeus. Em uma frase de seu Manual ele diz, “Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas queira que aconteçam como acontecem, e tua vida terá um curso sereno” (Tradução do grego antigo de prof. Dr. Aldo Dinucci).

Esta resignação inicial é uma estratégia de quase toda filosofia transcendente ou religião. Serve para que paremos de nos debater em vão contra o inevitável e partirmos dele – do inevitável – para podermos conhecer e agir em cima daquilo que realmente está sob nosso controle ou poder. Em muitas dessas filosofias e religiões, eles têm que explicar como funciona essa relação de determinação cósmica ou divina com a liberdade humana, o que as torna complexas e, muitas vezes, contraditórias. Não necessariamente elas têm que ser contraditórias, mas complicam antes de simplificar. Uma simplificação inicial seria simplesmente não aceitar essa teoria. Pronto, se não acredito em Zeus ou em qualquer outro ser divino, não preciso me preocupar em explicar essa possível contradição e acabo achando também outros caminhos – nada fáceis também – de justificação do real e daquilo que sou e posso ou não controlar.

As teorias anteriores são fideístas, em algum sentido. E fideístas no sentido da crença sem provas, sem contestação, sem crítica alguma, negacionistas de qualquer “prova” em contrário. Esta liberdade restritiva psicanalítica, é uma dessas teorias fideístas, tanto quanto outras terapias do comportamento humano que não são psicanalíticas, algumas inclusive, filosóficas (como a do Dasein em Heidegger).

E como não são fatos da realidade, mas interpretações deles, em alguma medida temos que acreditar fideisticamente que é assim ou assado. Eu, na filosofia clínica, acredito que cada pessoa, indivíduo, sujeito – como queiram chamar – é singular em seu aspecto mais íntimo e básico, sua estrutura interna. Como posso provar isso? Qual o instrumento experimental que corrobora minha crença? Esse é o quinhão da “aposta”, da adesão a uma crença que até tem regularidades no comportamento humano e muito se fala sobre respeitar a diferença e elogiar o idiossincrático, mas “prova” mesmo, com P maiúsculo, não tenho.

Obviamente que através de nossas observações regulares sobre nós mesmos e sobre outras pessoas, o inconsciente “aparece” (quase uma contradição em termos), mas poderia ser usado com outras nomenclaturas, como subconsciente, pré-consciente (Freud usa esse termo para designar sua topologia ou nível de consciência/inconsciência), hábitos arraigados e até inconsciente.

Mas, se não aceitarmos as profundezas do inconsciente como algo obscuro e inacessível a nível consciente e racional, podemos ver que muitas vezes nossas “inconsciências” se apresentam a nós em uma pesquisa um pouco mais trabalhada – seja sozinho ou em alguma terapia – e que, muitas vezes, se não quase em sua totalidade, ao contrário, o inconsciente está muito perto de nós, inclusive com nossa anuência, ou seja, “sabemos”, de certa forma, aquilo que não queremos que seja consciente ou que venha à tona. Temos um certo “controle” sobre nossa própria inconsciência. E digo isso porque é exatamente isso que vejo na filosofia clínica em minha experiência como terapeuta.

Então, a filosofia clínica está certa e a psicanálise errada? Não, mas a psicanálise não tem essa supremacia que ela mesma se colocou sobre a identidade “interna” do ser humano e que a história assimilou e fortaleceu.

Psicanálise, filosofia clínica, psicologias, terapias filosóficas e outras são todas opiniões fundamentadas em justificações indutivas. Nenhuma delas carrega a autoridade suprema da verdade ou do conhecimento sobre o comportamento humano.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura. Graduado, Mestre e Doutor em Filosofia. Escritor. Palestrante. Filósofo Clínico. Professor titular de Filosofia Clínica. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Málaga/Espanha

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