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Os caminhos existenciais

Lúcio Packter
Pensador da Filosofia Clínica


No paralelo 28, no extremo sul do Brasil, um rio de água verde-esmeralda tem sua foz no oceano. Quando era guri, durante os meses quentes de férias veraneávamos há poucas centenas de metros de sua desembocadura. Meu pai era cirurgião em um pequeno hospital nas redondezas e o local era adequado caso fosse chamado para alguma emergência, o que não raro acontecia.

Nossa casa ficava em frente ao mar, cercada por restinga com aquela feitura arenosa, porosa como esponja. As gramíneas cresciam por toda a parte; eu e meus irmãos brincávamos com nossos soldados e toda a cavalaria entre aqueles cipós de flores que encordoavam as dunas maiores. No início da vida achei que bromélias, cactos e samambaias fossem tão abundantes no mundo quanto aqueles caranguejos amarelos dos areais, besourinho-da-praia, viúva-negra, gafanhoto-grande, coruja-buraqueira, perereca.

Com seis anos eu achava que o mundo não poderia ser muito maior do que a restinga. Meus argumentos eram consistentes diante da variedade que descobria a cada dia, como sumarés, aperta-goela, açucena, cactos, aroeirinha, jurema. Admitia então que o mundo seria apenas uma parte maior de praia, de Morro dos Conventos.

Algumas notícias me causavam encanto. Nunca mais considerei da mesma maneira as dunas que se estendiam poucas jardas depois do fundo de minha casa quando soube que elas vinham se formando há cinco mil anos. Na realidade eu não entendia direito o que seriam cinco mil anos, entendia que era algo importante, e sabia que se multiplicasse indefinidamente o tempo que durava uma aula em dia de chuva as coisas se equivaleriam.

As dunas eram ocasião para caminhadas à tardinha, nunca com o sol alto. Serviam para todo o tipo de coisa, desde esconde-esconde até refúgio para momentos difíceis. Um vizinho nosso costumava fugir para lá colocando os poucos moradores da aldeia em missão de socorro. Com o tempo, ninguém se preocupava com isso; ele fugia pela manhã e antes do anoitecer estava de volta. Uma parte das dunas descia até a base do costão rochoso. Esse costão era um grupo de falésias com oitenta metros de altura, rochas com cerca de duzentos milhões de anos. Não sei porque, mas, para mim, as dunas brancas pareciam sempre mais antigas. Numa lógica difícil de explicar, entendia que primeiro veio o rio, depois as dunas e, por último, muito depois, os rochedos. As plantas e pequenos animais pareciam recentes e deveriam regular em idade comigo, já então com oito anos.

Era raro conter o entusiasmo ao saber que as primeiras civilizações locais abrigavam-se dos inimigos nas furnas e que havia tesouros escondidos lá. Não sei de nenhum amigo que não tenha procurado pelos tesouros em buscas que planejávamos com diligência. Tínhamos objetivos nobres e sabíamos o que faríamos com os tesouros, a começar pela compra da sorveteria.

Cada parte da aldeia tinha suas lendas. Não era tarefa simples separar as crendices dos fatos históricos. Minha mãe, imbuída de judaísmo, me ajudava quando eu me perdia.

Era um fato que depois de 1580 os índios passaram a ser caçados na bacia do rio Araranguá em seus aldeamentos indígenas. Era fato a estrada que foi aberta em 1730 unindo a embocadura do rio até o planalto serrano para a passagem das tropas, do gado, das mulas carregadas. Seria fato ou invencionice a origem do nome do povoado, Morro dos Conventos? Os jesuítas podem ter originado o nome quando estiveram no lugarejo.

Mas o provável é que navegadores, observando os rochedos torcidos do alto mar, tenham achado as falésias um agrupamento similar a um convento. É curioso. Já avistei as penhas elevadas da balsa do rio, de pequenos barcos pesqueiros em mar alto, e não sei como chegaram a imaginar conventos olhando para aqueles penedos escarpados. Nem isso às vezes eles parecem; parecem mais fragas soltas que lembram ilhas. Mas na época, assim como hoje, não tinha a visão de um navegador. O que sei do mar é o que descobri dele nos areais da restinga da beira-mar. E, sendo assim, Morro dos Conventos é algo possível.

Na parte mais íngreme e sobranceira dos penhascos, o farol da marinha lança um poderoso facho de luz por cerca de trinta milhas marítimas; do cimo onde ele foi construído avistávamos baleias francas e seus bebês, adivinhávamos os arrozais que cobrem milhares de hectares, as comunidades de pescadores com suas confecções de esteiras, cestas, leques, tarrafas – construídas com a palha de butiá, junco, palha de milho e outros materiais.

Os índios carijós viviam ao sul; depois chegaram europeus e africanos.

Ao norte, existe um sítio pré-cerâmico, uma espécie de jazigo mortuário provavelmente do século quatro. Usavam cremação, coisa que nenhum de nós sabia ao certo o que era, mas que despertava nossa criatividade para todo o tipo de história.

Minha amizade com o rio era profunda quando comecei a ver seus contornos do cume dos rochedos.

Um fato é que comecei a considerar os caminhos da vida acompanhando as evoluções do rio Araranguá, mas isso somente constatei muito tempo depois. Na época, eram pensamentos bonitos e soltos na brisa.

Um fato, mas que muitos consideram dito invencioneiro, é que sua água pode mudar as cores diversas vezes em um dia, passando do azul-marinho para o verde-esmeralda, para um amarronzado. Passei muitos dias na margem sul para saber que é assim.

E um fato é que este escrito começou a ser construído a partir das lições de vida, dos caminhos existenciais, que surgiram com a amizade de um jovem com um rio.

As primeiras lições eram elementares.

Com o balseiro aprendi as tenuidades que as rotinas podem requerer; e acuidade dos sentidos. Diversas vezes atravessei os cento e cinqüenta metros nadando, ao lado da balsa, conhecendo então ensinamentos que não tinha quando desfrutava o translado comodamente sobre suas madeiras.

O assoalho arenoso ou argiloso do rio trouxe a suavidade dos limites.

A barra móvel do rio, que oscila centenas de metros, mostrou um vínculo com o mar que varia da animosidade ao sôfrego; que varia de modo a chegar, mais de uma vez, a uma mescla indefinida de algo sequioso e abundante. Isso ocorria quando ilhotas surgiam e desapareciam furtivamente em questão de horas. As ilhas recebiam nomes de acordo com as formas: ilha da canoa, ilha do barril, ilha da mama da vaca, ilha do careca.

Meu amigo rio causou-me medo em algumas ocasiões. Apenas seus motivos me acalmavam, mas nunca me abrandaram a tristeza.

Quando a maior parte de sua mata ciliar foi seriamente magoada, seus peixes mais habituais, como a tainha e o cará, diminuíram as aparições; quando os restos peritosos do carvão contristaram as cores de suas águas, os tóxicos do plantio do arroz assorearam suas calhas, quando seu manguezal – um dos últimos limites austrais da América do Sul – foi açodado, e quando as encostas foram desmatadas, o rio passou a ter acessos de fúria. De vez em quando, inunda a rodovia, traz impetuosamente, de rastos, casas; alui pequenas aldeias, assola plantações inteiras. Nesses momentos entristeço.

Nadei em suas águas quentes quando o mar esteve friíssimo; passei tardes e pedaços de noite em suas margens mansas; acompanhei suas peles douradas pelo amanhecer e adormeci muitas vezes com a candura de seus sons.

Ao começar a escrever um livro, fui caminhar pelas margens do rio; hoje, ele está mudado, mas ainda repleto de muito do que me propiciou.O balseiro não existe mais e em seu lugar uma balsa a diesel leva e traz automóveis. Tirei muitas fotos para ilustrar estas páginas. Banhei-me, ouvi os sons, acompanhei os ventos. Perguntei em silêncio se fora invencionice ou fato a vez que nadei à noite com os botos que entram pelo canal da barra, que ainda hoje enfileiram os pescadores e suas tarrafas. E ele me perguntou se foi invencionice ou fato a vez que caminhei sobre suas águas.

Reflexões,experiências, desdobramentos aconteceram desde que nossa amizade começou. Aprendi novas lições, arrependi-me de outras, e descobri outros caminhos a partir daqueles.

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