“Comecemos pelo Zé
Ninguém que habita em mim: Durante vinte e cinco anos tomei a defesa, em
palavras e por escrito, do direito do homem comum à felicidade neste mundo;
acusei-te pois da incapacidade de agarrar o que te pertence, de preservar o que
conquistaste nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela
Independência americana ou na revolução russa. Paris foi dar a Pétain e Laval,
Viena a Hitler, a tua Rússia a Stalin, e a tua América bem poderia conduzir a
um regime KKK – Ku-Klux-Klan. Sabes melhor lutar pela tua liberdade que
preservá-la para ti e para os outros. Isto eu sempre soube. O que não entendia,
porém, era porque de cada vez que tentavas penosamente arrastar-te para fora de
um lameiro acabavas por cair noutra ainda pior. Depois, pouco a pouco, às
apalpadelas e olhando prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU
O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém senão tu é culpado da
tua escravatura. Mais ninguém, sou eu que te digo!”
Wilhelm Reich
Escuta, Zé Ninguém
Angústia é o que te
prende. Transporta-te para o objeto que compras. Familiariza-te com os pets,
excluindo os sistemáticos de sangue. És patrulha do trânsito, funcionário
público digno de respeito, impiedoso em tua própria lei.
No mesmo tom de Reich
na obra citada, escrevi “O Himeneu” no final da década de 80. Como a mulher
moderna poderia se resignar ao casamento? Presságios do que viria.
Décadas depois, nova
descoberta, novamente me rendi ao peso do destino do qual se foge, quando para
ele mais rapidamente se caminha, tal como A hora da estrela, de Clarice. À
semelhança de Reich, apliquei o método filosófico clínico em mim. Por 25 anos
investiguei a categorização do ser pela ciência. A última visita a hospital
psiquiátrico me mostrou que o filme não havia acabado, apenas cortaram as
cenas.
Há muito a desvendar
abaixo dos incêndios criminosos que expurgaram 100 anos de história no Centro
Hospitalar de Franco da Rocha. Arrepio com as lembranças do caminhar pelos
antigos jardins do prédio da Administração Central, foi apenas o que sobrou
para ter contato. Todo o trabalho de valorização da arte como terapia, iniciado
em torno de 1920, pelo mestre Osório César, de notoriedade internacional,
conhecido a partir de livros, parecem agora residir apenas nestes.
O museu com
as obras dos “artistas loucos” inaugurado em 1985 está fechado, sob vigilância
constante. Mas na distância, é o Complexo do Juquery que aparece; foi em razão
dele que a cidade se fez em torno. O holocausto de Barbacena, que arrebatou 60
mil vidas, começou a ser exposto em 1978, com a luta antimanicomial.
Entretanto, do hospício de Franco da Rocha pouco se sabe.
Ironia ainda maior do
que a trajetória da pesquisa sobre a loucura caiu sobre meu ser, abatido em
lutas de tópicos e categorias, procurando no abstrato resolver choques
práticos, buscando a anestesia pelo exercício dos sentidos para aliviar a dor.
Fazer malabarismos com tempo, espaço, relações. Desfocar assuntos imediatos.
Abandonar os textos. Esquecer a mente. A ansiedade continuava; o coração
soluçava aos saltos, mas o holter nada acusava. Restou, no último grito, o
psicotrópico. Mas como poderia, após essa longa caminhada de luta pelo
alternativo?
Tanta leitura, e me
transporto para o lado de uma das mais comoventes histórias, dentre os 200
livros pelos quais passei durante o mestrado sobre a loucura: o relato sobre a
mente inquieta de Kay Jamison, que sorvi durante meu retiro profissional em
Iturama/MG, no início da década de 2000. Médica psiquiatra, Jamison descreveu
seus episódios criativos de mania, de que até tinha orgulho, e os profundos
ocos da depressão. Difícil ser casa de ferreiro.
Pois bem, um leve
antidepressivo e a espiritualidade me ajudaram a atravessar o que em poucos
meses se revelou, em cidade estranha, longe da família e amigos, ser uma
situação de risco à vida a exigir acompanhamento sistemático. Venci as emoções
negativas, enfrentei as circunstâncias e, o mais extraordinário do depois:
modelo a vida a cada dia conforme a dor que se apresenta, de momento a momento,
sob pura estratégia; ora lhe fazendo concessões, pois é preciso descansar; ora
afirmando que a vida também é imprudência, senão, inexiste em toda sua
capacidade de virar ato.
Texto entregue, desejo
que uma equipe comprometida com o ideal histórico vasculhe os fatos em torno
dos manicômios, a partir do final dos anos 70, quando começaram as denúncias
contra maus tratos naqueles locais. Algumas instituições humanizaram os
tratamentos, em vários municípios existe o hospital-dia e os Centros de Atenção
Psicossocial – CAPS com terapeutas diversos, mas há muito a investigar.
Fora os escândalos
fúnebres, pois ninguém morre de loucura, é preciso que se saiba que uma pequena
porcentagem dos internos permaneceu nos asilos após a transição para o novo
modelo psiquiátrico por não saberem mais como sobreviver fora dele, ou por não
terem uma família esperando. E há outros cidadãos esquecidos em haldol ou
hipnotizados na internet que poderiam estar vivendo conosco.
*Vânia Dantas
Filósofa Clínica
Brasília/DF
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