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Não entendi. Sinto muito.*


Pessoas que terminam frases com a pergunta “não é?” me intrigam. Sempre quis saber como funciona a mente destas criaturas.

Quando Pedro diz que segunda feira é o pior dia da semana, e,  em seguida, me interroga com o detestável “não é?”, na prática, efetivamente está esperando minha confirmação para avançar com a conversação.  Precisa de cumplicidade e aprovação para continuar o raciocínio. Por que a cada duas ou três frases estas pessoas precisam de um apoio, uma base para suas falas?

Geralmente não nos dão tempo para responder, mas é assim mesmo que funciona o jogo. Ao falar o "não é", encaram-nos firmemente, constrangendo-nos e, meio que sem jeito, educadamente balançamos afirmativamente a cabeça, piscamos ou baixamos os olhos. Já é o bastante para que concluam que concordamos e prossigam seu falatório. Na verdade, não querem escutar nossa resposta, precisam apenas de um sinal verde para ir em frente com seu discurso. 

Se para eles funciona como sinal verde, para mim, cada “não é” atua como um quebra molas, retardando e atrapalhando meu discernimento. Já me dei o trabalho de contar,  durante uma palestra, quarenta e sete “não é”s em uma hora de conversa. Dependendo da insegurança de quem fala, a distância entre um “não é” e o próximo, pode ser menor que um minuto. E o pior, eles não se dão conta que repetem e reforçam a pergunta insistentemente.

Em uma crise de impaciência, depois de ouvir algumas dezenas de "não é"s, experimentei balançar negativamente a cabeça. Não recomendo, cada agitação indeferindo um "não é" funciona como um sinal vermelho, as pessoas param imediatamente ou claramente se perturbam no discurso. Interessante notar também que, quando se expressam de forma escrita, não utilizam esta muleta de apoio. O “não é” desaparece, talvez porque a insegurança ou timidez atemorizem apenas no modo falar, mas isto é apenas uma hipótese..

Descobri um parente próximo do “não é”. São aquelas pessoas que terminam as frases perguntando “entendeu?”. A primeira vista, parecem perguntas parecidas, mas não são. Estas últimas são mais sofisticadas. A cada “entendeu” dito, subliminarmente querem nos fazer sentir que não estamos conseguindo acompanhar seu argumento, seja em velocidade ou conteúdo. Provavelmente julgam-nos desqualificados, incompetentes ou incapacitados para seguí-los, precisando parar e aguardar até que os alcancemos. A frequência do "entendeu" pode depender do nivel cultural do ouvinte, mas geralmente é diretamente proporcional ao tamanho do ego e da ansiedade de quem fala.

É compreensível que um médico, depois de explicar o tratamento ao paciente, pergunte se o mesmo entendeu as instruções fornecidas, a letra do receituário, os efeitos colaterais dos medicamentos. Minha experiência mostra que grande parte não entende, mas por vergonha de admitir sua ignorância, confirmam que compreenderam, vão para casa e fazem tudo errado. Estas simulações de entendimento para evitar constrangimentos acontecem em várias profissões e situações de vida.

Juliana terminou o relacionamento com o seguinte diálogo-monólogo:
- Nos conhecemos em dezembro do ano passado, não é? pausa de dois segundos.
- Logo nos apaixonamos e curtimos aquilo que se chama de amor de verão. Foi ótimo, mas quando chegou o outono, o amor desapareceu, entendeu? pausa de 2 segundos.
- Passamos a perceber nossas diferenças, começamos a discutir a relação, não conseguíamos mais ficar juntos, não é? mais uma pausa de dois segundos.
- Então você decidiu que seria melhor darmos um tempo e foi viajar para a Europa. Ao invés de nossa relação melhorar com a distância e o tempo, a verdade é que ela esfriou no inverno, entendeu? pausa um pouco maior, quatro segundos.
- Sei que você está indeciso, não é? sem pausa.
- Não posso mais ficar nesta situação, entendeu? sem pausa
- Preciso ficar mais tranquila, mais segura, e você não está me ajudando, entendeu?

O namorado não teve oportunidade de esboçar uma única palavra, apenas chorava. Não entendeu o que era amor de verão, o que o outono tinha a ver com o amor, as diferenças que surgiram. Nada dito fazia sentido, apenas as lágrimas que lhe saiam dos olhos significavam, pois entender não é uma questão de inteligência, e sim de sentimento. Ele entendia o olhar frio, o tom de voz ácido, a distância que se impunha, mas as palavras fugiam a sua compreensão. Sentia muito, não entendia bulhufas. Tinha medo de começar a entender e deixar de sentir. Preferiu fingir que entendeu para não mais sofrer, sabia que viver ultrapassava qualquer entendimento.

A impressão que fica, é que se você entender e concordar com estas pessoas, tudo terá uma explicação lógica e elas ficarão bem. Não entendo guerra,  traição,  injustiça, hipocrisias que me são empurradas garganta abaixo, bem como vários "entendeu"s engolidos para conviver em sociedade.  Não entendo, não concordo, mas sinto.  Sinto muito por tudo isto. Como dizia Mercedes Sosa, só peço a Deus que não me deixe indiferente. Entender,  até abro mão.

*Ildo Meyer
Médico. Escritor. Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS 

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