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Apontamentos, poéticas noturnas XII* AS MULTIDÕES Não é dado a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte. E somente ele pode fazer, às expensas do gênero humano, uma festa de vitalidade, a quem urna fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão por viagens. Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão também não sabe estar só no meio de uma multidão ocupadíssima. O poeta goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de qualquer um. Só para ele tudo está vago; e se certos lugares lhe parecem fechados é que, a seu ver, não valem a pena ser visitados. O passeador solitário e pensativo goza de uma singular embriaguez desta comunhão universal. Aquele que desposa a massa conhece os prazeres febris dos quais serão
Ser Amigo é...* Saber ouvir os silêncios da alma, expresso em olhares, gestos, sorrisos, lágrimas... É falar quando for preciso sem medo de ser mal interpretado. Pois no fundo do coração, um verdadeiro amigo sabe que somente quem se preocupa com ele tem a coragem de falar a verdade. Acolher os medos reais ou ilusórios. O medo sempre é maior quando estamos sozinhos diante dele. A presença de um amigo sincero do lado torna a vida mais fácil de ser compreendida. Quem descobriu no sorriso de um amigo o antídoto para seus medos, encontrou um companheiro para a vida toda. Se alegrar com as conquistas do outro. Muito mais difícil do que acolher uma dor é se alegrar com as vitórias que não são nossas. Muitos sabem ser solidários na dor, mas incapazes de se alegrar com a felicidade de outros. Cultivar a amizade em pequenos gestos. Um “oi”, ou simplesmente um sorriso, um “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite” podem fazer grande diferença na vida de alguém. Amizade que não se cuida, morr
Apontamentos, poéticas noturnas XI* Canção de Outono O outono toca realejo No pátio da minha vida. Velha canção, sempre a mesma, Sob a vidraça descida… Tristeza? Encanto? Desejo? Como é possível sabê-lo? Um gozo incerto e dorido De carícia a contrapelo… Partir, ó alma, que dizes? Colher as horas, em suma… Mas os caminhos do Outono Vão dar em parte nenhuma! *Mario Quintana
Apontamentos, poéticas noturnas X* Penetração do Poema das Sete Faces (A Carlos Drummond de Andrade) Ele entrou em mim sem cerimônias Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu Na primeira fala eu já falava como se fosse meu O poema só existe quando pode ser do outro Quando cabe na vida do outro Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada Há apenas frases e desabafos pessoais Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas Te amo porque nunca nos vimos E me impressiono com o estupendo conhecimento Que temos um do outro Carlos, me escuta Você que dizem ter morrido Me ressuscitou ontem à tarde A mim a quem chamam viva Meu coração volta a ser uma remington disposta Aprendi outra vez com você A ouvir o barulho das montanhas A perceber o silêncio dos carros Ontem decorei um poema seu Em cinco minutos Agora dorme, Carlos. *Elisa Lucinda
Âncoras* 'Navegar é preciso; viver não é preciso' (Fernando Pessoa) Navegar e viver costumam ser desafios ao sabor dos ventos e das marés, como uma flecha lançada ao vento, sem rumo nem piedade, sem desculpas, sem destino, talvez só aquele que obstinadamente julgamos traçar. Não há garantias e pode não haver volta... e a cada movimento, entropicamente, detonamos o estoque de energia que nos foi reservado, sem nos darmos conta de que alguma coisa se esvaiu, de que algo precioso transmutou. Sabemos que emergimos do ventre e que vamos findar no ocaso da existência. O rio que corre entre essas duas margens, que por alguma razão somos impelidos a saltar, é que costuma fazer a diferença. Navegar é tão preciso quanto viver e viver é tão impreciso quanto navegar... uns se debatem sem alcançar suas ilhas distantes; outros buscam âncoras que os salvem daquilo que nem mesmo suspeitam, pois para ter qualquer migalha de conhecimento, virtude, experiência, ainda é preciso insistir e
Apontamentos, poéticas noturnas IX* Carta aos Pais “São Paulo, 12 de agosto de 1987. Querida mãe, querido pai, Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado. Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado. Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la. Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem co
Viver fora da caixa! Uma das perguntas comumente ouvidas num consultório é: “Doutor, isso é normal?” A pessoa que faz esta pergunta o faz para que alguém, no caso o terapeuta, possa lhe dizer se ela está ou não dentro dos padrões. O padrão é uma medida associada ao que está ao se redor, por exemplo, hoje é um padrão pagar pelo trabalho de alguém, quem não o faz está cometendo um crime, salvo as exceções para este exemplo. Entretanto, há pouco mais de cem anos o padrão era comprar alguém que fazia os trabalhos de uma casa, ou seja, era padrão ter escravos em casa. O padrão é portanto uma medida que toma por base o que tem ao seu redor. O padrão serve muito bem para questões práticas, para calcular o valor de um carro, para saber se o salário é adequado, para ver se o espaço de moradia está de acordo com a região onde se mora. Mas medir uma pessoa aquilo que há ao seu redor é a pior forma de se fazer isso. Diferente de um carro, o salário e até mesmo a moradia, uma pessoa apresen
Apontamentos, poéticas noturnas VIII* Marginal é quem escreve à margem, deixando branca a página para que a paisagem passe e deixe tudo claro à sua passagem. Marginal, escrever na entrelinha, sem nunca saber direito quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. * Paulo Leminski 1944 - 1989

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