Pular para o conteúdo principal

Postagens

Ditirambos*

Existe uma lógica superlativa em meio às façanhas usuais. Não fora seu ser extraordinário a desalojar cotidianos, poderia acessar, com mais facilidade, a epistemologia das coisas ao seu redor. Sua encenação de caráter imperfeito escolhe a vertigem para antecipar amanhãs. Um inusitado cio criativo, de essência exploratória, realiza festejos para representar mesclas de exclusão_integração. Sua perspectiva Dionisíaca sugere achados onde o para sempre vira a página. Um jogo de cena inventa linguagens para redesenhar a vida acontecendo. Essa dança de consciência alterada ensaia rupturas ao padrão existencial. Pode ser realizada nas ruas, praças, teatros ou diante do espelho. Acontecer de noite ou de dia, acordada em sua tribo ou nos esconderijos da solidão. Seu êxtase menciona um lugar quase esquecido, recém chegando pela expressividade fora de si. Num estado diferenciado a existência se encontra com sua irrealidade, rascunha novas proposições. Ao surgir numa retórica dançarina, o f

O crepúsculo da noite*

O dia acaba. Uma grande paz surge nos pobres espíritos fatigados pelo trabalho da jornada e seus pensamentos tomam agora as cores ternas e indecisas do crepúsculo. Entretanto, do alto da montanha chega à minha sacada, através das nuvens transparentes da tarde, um grande uivo, composto por uma multidão de gritos discordantes que o espaço transforma em lúgubre harmonia, como a da maré que sobe ou a ameaça de uma tempestade. Quem são os desditosos que a tarde no acalma e que tomam, como as corujas, a chegada da noite como um sinal do sabá? Esta sinistra ululação nos chega do negro hospício empoleirado sobre a montanha; e à tarde, fumando e contemplando o repouso do imenso vale, arrepiado de casas onde cada janela diz: “A paz agora está aqui, está aqui a alegria da família”, eu posso, quando o vento sopra do alto, embalar meus pensamentos assombrados por essa imitação das harmonias do inferno. O crepúsculo excita os loucos. Lembro-me que tinha dois amigos que o crepúsculo

Pote Rachado*

Querido leitor, paz!  Havia na Índia um carregador de água que transportava esse líquido nas duas pontas de uma vara que levava atravessada no pescoço. Levava um pote de barro de cada lado, mas não eram potes normais, pois um deles tinha uma rachadura bem no meio e o outro era perfeito. O pote que ainda estava intacto, é óbvio, chegava sempre cheio ao seu destino ao final do longo caminho que ia do poço até à casa do patrão. O pote rachado chegava apenas com metade da água. Assim, durante dois anos ininterruptos, o carregador entregou, diariamente, um pote e meio de água em casa do seu senhor. Conta a lenda que o pote perfeito, é claro, estava orgulhoso do seu trabalho. O pote rachado, porém, estava envergonhado da sua imperfeição. Sentia-se miserável por apenas ser capaz de realizar metade da tarefa a que estava destinado. Depois de perceber que, ao longo de dois anos, não tinha passado de uma amarga desilusão, um dia o pote disse ao homem, à beira do poço: -

Lua Quadrada*

Como assim? É uma Lua assim Astuta e resoluta E traz com ela um Sim. Neste quadrado há poder Pois ele reúne condições essenciais O momento em si é para tecer E resolver, por fim, questões vitais. Aproveitemos para demarcar O que dali em diante receberá muita ação Mas de um tipo que já obteve âncora E, por isso, garantia de sustentação. Sejamos resolutos e éticos Diante deste poder propício e perfeito Já que limites precisam ser dados Para que assim reconstituam nossos direitos. *Renata Bastos Filósofa, mestre em filosofia, astróloga, filósofa clínica São Paulo/SP

Cantos de Sesmaria*

O leito do rio           é minha estrada verdadeira. Vou e não volto. Salto fora das margens          e viro paisagem          de pampa          e memória de vento. Sou o mesmo          e meu canto é meu alarde,          sono a esmo          no clamor da tarde. Me sei invento         do que fui         rio abaixo         e do que sou         mar adentro. *Luiz de Miranda

Antes do nome*

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o 'de', o 'aliás', o 'o', o 'porém' e o 'que', esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão, Puro susto e terror. *Adélia Prado

Recomeçar*

Recomeçar nem sempre é fácil. Muitos fazem planos e se desanimam nos primeiros desafios. A vida exige o empenho e a determinação. Contudo nem sempre é fácil encontrar estes sentimentos na alma, principalmente quando os desafios parecem ser maiores que as vitórias. Há dias nublados e dias de sol na alma. Nem sempre acordamos dispostos a olhar para a vida com as exigências que outros nos propõem. No ritmo da vida vamos descobrindo a velocidade dos nossos próprios passos. Impossível será caminhar na velocidade que as pessoas insistem em nos impor. Talvez um dos segredos da vida seja descobrir no tempo de nossa alma o ritmo que não nos atropela e que não nos machuque. O recomeço só será frutífero se primeiro nos conhecermos a nós próprios. Quem descobriu quem é conseguirá encontrar em si mesmo a força para o novo. Não há recomeço enquanto continuarmos perdidos em nosso próprio coração. *Padre Flávio Sobreiro Poeta, escritor, estudante de filosofia clínica Cambuí/MG

Dos retratos existenciais*

Certamente você conhece alguma pessoa com quem não tem contato há 2 meses, 2 anos ou 2 décadas. É um familiar que mudou de cidade porque constituiu família, ou um amigo que foi promovido no emprego e teve que mudar também de cidade, uma amiga que foi para o exterior fazer um intercâmbio de estudos. Na hipótese de um reencontro, você conversa com a pessoa, percebe algumas mudanças e logo passa à sua cabeça "nossa, como o fulano mudou!". Isso pode ser um indicativo de que você fez um retrato existencial da pessoa e que ainda a enxerga como ela era tempos atrás. Teu amigo era viciado em refrigerante e agora só toma água sem gás. Era o primeiro a sentar na mesa para apreciar um suculento churrasco e agora aderiu ao vegetarianismo. Sempre falou em ter um número de filhos que desse para montar um time de futebol e agora expressa a vontade de ter apenas mais um, para fazer companhia ao Júnior, o único filho até então. Tinha asco ao som de guitarras pesadas, pois só ouvia MP

Pensar é transgredir*

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido. Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo. Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!" O problema é que quando menos se espera e

Os convites da poesia*

O poeta, ao se alimentar de poesia, reescreve cotidianos, ultrapassa os limites do espaço-tempo, reencontra ser e não-ser. Sua provisoriedade fugaz deixa vestígios por onde andou, versão translúcida a percorrer-se nos labirintos de sua subjetividade em movimento. Não se sabe ao certo sobre a natureza desse convite: se é recordação, esquecimento ou pretextos outros. É possível ao sujeito desmerecer esses textos de origem difusa, no entanto, a atração irresistível da ótica precursora sobrevive em novo vocabulário, ainda que em cotidianos desmerecidos. Uma sedução se oferece entremeios de recordar e registrar os ímpetos que a palavra tentou traduzir. A descrição parece colocar na ponta da caneta algo mais, nem sempre acessível aos rituais do pensamento. Talvez os esboços da irrealidade aconteçam para que se consiga viver melhor. A estética que alimenta as fontes parece esparramar, generosamente, seu fluxo de versos numa poética a resignificar vicissitudes em dias de sol. A poesi

A levitação de Clarice*

            Um dia Clarice liga dizendo que aceitou dar um depoimento no Museu da Imagem e do Som, mas fazia questão que Marina e eu fôssemos os entrevistadores. Eu a conheci em 1962 quando ela foi a Belo Horizonte lançar A maçã no escuro, na livraria Francisco Alves, e o gerente da livraria o professor Neif Safady convidou-me, eu ainda estudante de Letras, para fazer uma espécie de discurso de apresentação dela. Lembro-me da primeira visão que tive daquela linda e consistente mulher no hall do Hotel Normandy.             Estranhamente, tinha só meia dúzia de pessoas no lançamento. Depois disto fomos jantar num restaurante chinês e me lembro de que Ivan Ângelo estava conosco. E como seguíssemos durante a sobremesa falando de A maçã no escuro o garçom nos interrompeu constrangido explicando que a  maçã estava meio escura, mas não estava estragada.             O convite para aquela entrevista no MIS, que ocorreu um ano antes de sua morte, era um pacto de amizade. Essa relação afeti

Cachoeira*

Tomar um banho de cachoeira para purificar Deixar a água fria cair na cabeça E levar córrego abaixo Todos os medos e anseios de uma vida; Ficar em contato com a natureza E sentir o cheiro das coisas Sem se preocupar com o que acontece ao redor Pois o que acontece nada mais é Do que a vida acontecendo, Sem nenhuma interferência E sem nada a ser feito. Estar sozinho e sentir-me bem; Estar em contato com o ar natural; Refletir e tentar encontrar os pontos-chave; Curtir a solidão.   *Vinicius Fontes Filósofo, estudante de filosofia clínica Rio de Janeiro/RJ

Visitas