Pular para o conteúdo principal

Postagens

A um ausente*

Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada? Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste *Carlos Drummond

O fim das certezas*

Heráclito com o devir, Platão com sua dialética, Aristóteles com potência e ato, Kant com os limites da razão, Kierkegaard com a angústia, Husserl com as críticas às certezas das ciências contemporâneas, e tantos outros pensadores, dos quais esses são apenas de caráter ilustrativo, mostram o limite e as incertezas diante da busca de dar um caráter absoluto ao saber humano.   Filosofia é busca pelo saber. O que há de mais comum no universo filosófico é o reconhecimento de que não se está dando a certeza absoluta para suas buscas. Não há frustração por isso. Aqui a humanidade mostra uma de suas realidades mais originais, o reconhecimento da limitação. Albert Camus postula que diante do mundo, o homem vive o sentimento de absurdo quando reconhece que sua razão não pode abarcá-lo. Heidegger apresenta a angústia diante da limitação humana com a morte, como passo necessário para existir autenticamente. Sartre apresenta a falta de determinação ou destino e a angústia diante da li

O Mapa*

Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo... (É nem que fosse o meu corpo!) Sinto uma dor infinita Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei... Há tanta esquina esquisita, Tanta nuança de paredes, Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...) Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada No vento da madrugada, Serei um pouco do nada Invisível, delicioso Que faz com que o teu ar Pareça mais um olhar, Suave mistério amoroso, Cidade de meu andar (Deste já tão longo andar!) E talvez de meu repouso... *Mário Quintana

Motivos para se desapaixonar*

Sempre fui apaixonado por futebol. Acho até que era um tanto fanático pelo meu clube, o Internacional de Porto Alegre.  Ia ao estádio assistir todos os jogos, com chuva, frio ou vento forte. Ganhando ou perdendo estava lá para ver meu time jogar e torcer por uma vitória. Aos poucos fui perdendo o interesse a ponto de hoje não assistir nem aos jogos transmitidos pela televisão. Mas a apatia não foi sem motivo. O futebol se profissionalizou demais, virou muito mais técnica que talento. O amor pela camiseta e a garra que marcaram minha infância já não são os mesmos. E quando as coisas deixam de ser feitas por amor e paixão e o dinheiro passa a ser o combustível, a graça e a beleza murcham como flores sem água no deserto. Meu fascínio pelo futebol acabou, mas lá no fundo ainda ficou a lembrança dos bons tempos e o desejo de resgatar a paixão de ir à campo vestindo a camiseta do clube, pintar o rosto com a cor vermelho-paixão e voltar orgulhoso ao final da pa

A solidão*

Um jornalista filantropo disse-me que a solidão é má para o homem, e, em apoio a sua tese, cita, como todos os incrédulos, as palavras dos Padres da Igreja. Eu sei que o Demônio frequenta prazerosamente os lugares áridos e que o Espírito do assassínio e da lubricidade inflama-se maravilhosamente na solidão. Mas é possível que esta solidão não seja perigosa senão para almas ociosas e divagantes que povoam suas paixões e suas quimeras. É certo que um tagarela, cujo supremo prazer consiste em falar do alto de um púlpito ou de uma tribuna, se arriscaria a tornar-se um louco furioso na ilha de Robinson. Eu não exijo de meu jornalista as corajosas virtudes de Crusoé, mas peço que ele não acuse os amantes da solidão e do mistério. Há, em nossas raças faladoras, indivíduos que aceitariam com menos repugnância o suplício supremo se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma copiosa arenga, sem medo de que os tambores de Santerre lhes cortassem intempestivamente a palav

Amores Modernos*

Indivíduos realizados, alegres e com vidas próprias, compõe casais mais interessantes, interagentes, interativos. É bom pensar que uma característica marcante do amor é a clara percepção do outro, e o cuidado em não frustrá-lo nem coagi-lo gratuitamente. Indivíduos realizados, alegres e com vidas próprias, compõe casais mais interessantes, interagentes, interativos. Tentar impedir que o outro se cuide fisicamente, que estude, que dance, que jogue bola, para não correr o risco dele se interessar por alguém em uma dessas oportunidades, empobrece a relação, limitando a mente e o corpo. Tolhe a libido, inibe o desejo sincero e a vontade de impressionar o parceiro se fazendo atraente. A insegurança e o não permitir que o outro evolua, respire e viva, faz com que os casais fiquem atrofiados, sem papo, sem entrosamento e sem graça. … mas se o outro der claras mostras de querer estar sozinho, lá se vão todas as declarações de compreensão, maturidade, responsabilidade, di

O menino que escrevia versos*

"De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei? (VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)" — Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha. — Há antecedentes na família? — Desculpe doutor? O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias: — Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol. Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período d

Visitas