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Memória*

“Tom é palavra que presta serviços a mais de uma arte.” Herbert Read Eu sou antigo, muito antigo, quase uma pintura paleolítica, Uma imagem na pedra, bosquímane da África do Sul, Eu sou muito antigo, só não envelheci o suficiente, Eu sou tão antigo, existo antes do indivíduo, sou parte do coletivo. Atravessei os tempos, sou milenar, sou o risco da arte pagã, Vim de longe, sou de todos os lugares eu hoje só a memória pode falar. Vim do retrato, escalei o adorno da história, morri muitas vezes, Sou um traço tão antigo, as rugas não conseguem mostrar os tempos existentes em minha carcaça de bronze. Sou mais antigo que o sentido das coisas, dentro de mim existe o tempo, existe uma máquina de som cromático. O Outro, a curva do olhar que se perde na abstração da forma, sou mais antigo do que isso, o pólen das estações. O Outro, o que existe é único – do primitivo não vivi mais do que vivo hoje, Envelheço nos conceitos, nas cores e nos dias. Sou muito antigo

Não te Arruínes, Alma, Enriquece*

Centro da minha terra pecadora, alma gasta da própria rebeldia, porque tremes lá dentro se por fora vais caiando as paredes de alegria? Para quê tanto luxo na morada arruinada, arrendada a curto prazo? Herdam de ti os vermes? Na jornada do corpo te consomes ao acaso? Não te arruínes, alma, enriquece: vende as horas de escória e desperdício e compra a eternidade que mereces, sem piedade do servo ao teu serviço. Devora a Morte e o que de nós terá, que morta a Morte nada morrerá. *William Shakespeare, in "Sonetos"

Saber Poder*

Foucault diz que há um "Saber Poder", que é o saber que tem o poder de dar diagnósticos de valor em função daquele que tem o saber contra aquele que não tem o saber. A partir daí se desenha uma engenharia social baseada em um suposto saber que é efetivo poder, autorizado, é claro pelas instituições e, obviamente, defendido por elas.  Mas há também muito Poder para um Saber: a psiquiatria. Ela está em todos os âmbitos de nossas vidas, crianças e adultos. Em exércitos, hospitais, empresas e, claro, em escolas. Esse saber tem muito poder (além do Saber Poder) e acaba por definir a sanidade mental daqueles que estão em sua órbita.  A primeira coisa que as escolas deveriam fazer é cortar esse Poder desse Saber pela raiz e não permitir que desse Saber se marque, principalmente crianças, de forma tão covarde e embrutecedora. Como o Poder desse saber já se espalhou pela sociedade em geral, não apenas pseudo-médicos (os psiquiatras), mas coordenadoras de escolas, supervis

Livro do Amor*

O mais singular livro dos livros É o Livro do Amor; Li-o com toda a atenção: Poucas folhas de alegrias, De dores cadernos inteiros. Apartamento faz uma secção. Reencontro! um breve capítulo, Fragmentário. Volumes de mágoas Alongados de comentários, Infinitos, sem medida. Ó Nisami! — mas no fim Achaste o justo caminho; O insolúvel, quem o resolve? Os amantes que tornam a encontrar-se. *Johann Wolfgang von Goethe

Outonos que há em mim*

A poética do outono nos contextos da vida. Outonos que há em mim Silenciosamente as folhas vão perdendo seu vigor de outrora. O verde das esperanças dá lugar aos tons avermelhados e amarelos do entardecer.  Tempo de despedidas e recomeços. Na vida os ciclos se despendem para dar início a novas estações. Alma povoado de tempos, que se perdem e confundem com o ainda não conhecido. Não há despedidos quando o desejo é de recomeçar. Na saudade do que se foi a alegria de novas chegadas. De novos portos que esperam o desembarque para novas experiências.  No incerto futuro da vida o desejo é apenas de chegar. Nas imprevisões de uma tarde de outono se escondem as sementes que silenciosamente estão em processo de germinação no coração de novos tempos. Silenciar a alma para ouvir a si mesmo. Sem perder-se. Mas com a calma necessária para encontrar-se. Nada além de sonhos possíveis.  Os impossíveis pertencem as estações que ainda não foram geradas. Viver. Sem deixar de lado

Recado aos Amigos Distantes*

Meus companheiros amados, não vos espero nem chamo: porque vou para outros lados. Mas é certo que vos amo. Nem sempre os que estão mais perto fazem melhor companhia. Mesmo com sol encoberto, todos sabem quando é dia. Pelo vosso campo imenso, vou cortando meus atalhos. Por vosso amor é que penso e me dou tantos trabalhos. Não condeneis, por enquanto, minha rebelde maneira. Para libertar-me tanto, fico vossa prisioneira. Por mais que longe pareça, ides na minha lembrança, ides na minha cabeça, valeis a minha Esperança. Cecília Meireles, in 'Poemas (1951)'

Escuto histórias de amor*

Escuto a minha história de amor e a minha história acerca do amor no mundo e em você. Escuto a sua história, a minha história, a história do mundo do amor romântico, a história que vai contra a necessidade de amor. Escuto falar bem e mal dele. Escuto com paciência, às vezes com emoção, com todo meu coração. Escuto sem julgar. Escuto a sua história e não me apresso em querer consertar nada, não pretendo mudar nada, não entendo escuta sem amor, sem entrega, sem desejo sincero de simplesmente colocar você no colo e deixar você despejar ali, todo seu amor. Escuto a minha história de amor e pretendo, tento filtrar no meu entendimento, todo ensinamento possível e pretendo ainda, juro que sempre pretendo a proeza, a delícia de racionalizar o mínimo possível sobre as lições que a vida a dois me ofereceu, mas apenas, seguir em frente, cada dia mais alegre e capaz de amar. Apenas isso. Escuto a sua historia de amor. Sertaneja, seresteira, sambista, roqueira, não importa

A Espantosa Realidade das Cousas*

A espantosa realidade das cousas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo. Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais. Naturalmente. Cada poema meu diz isto, E todos os meus poemas são diferentes, Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não me perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Gosto dela porque ela não sente nada. Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos

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