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Desejos*

Há muito, muito tempo começamos a gestar o micróbio da realidade que temos agora. Os anos calcificaram tanto a percepção até não mais lembrarmos que as agruras enfrentadas são justamente os males um dia pensados, materializados nas condições físicas e materiais do entorno ora vil. Um ditado para isso: “cuidado com o que desejas, pois pode se realizar”. Naquele tempo, não se sabia do “Segredo”, essa geração espontânea a partir do pensamento. E foi-se, dia após dia, não podendo mudar as circunstâncias nem a si mesmo, elaborando pragas e perjúrios, fornecendo substância para o que seria, no meio da jornada, uma pedra oca a guardar a escuridão. Numa estrada de terra no meio do quase nada, o motorista diz: “Olhe como são as coisas. Quando eu era menino, ficava andando nas estrada no Ceará, andava muito mesmo; de vez em quando, pegava carona e eu pensava – ainda vou dirigir um carro por essa terra toda. E hoje to aqui, sou motorista”. Por isso a gente precisa planejar o que quer

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"(...) o Viajante curioso é para o Passageiro responsável aproximadamente o que o camaleão era para o urso. O primeiro investigador, etnógrafo, no limite, espião, para recolher conhecimento, tem antes de mais nada necessidade de se fazer admitir no espaço-tempo onde transita: é por isto que, seja qual for o lugar onde se introduz, ele tem que se disfarçar segundo a 'cor local', até quase confundir-se com o Outro, sem chegar, no entanto, jamais a querer se fundir nessa identidade diferente (...)" "(...) Desse ponto de vista, a mudança, esperada, desejada, assumida, torna-se paradoxalmente produtora de identidade. Aderir a ela, não é nesse caso 'morrer um pouco' deixando partir, como o que foi, uma parte de si que não será mais: é talvez, exatamente ao contrário, um dos meios mais elementares de afirmar sua própria existência, tanto ao olhar de si mesmo como diante de outrem. É mudar se não 'a vida', em todo caso, o sentido de sua própria v

Parafraseando***

Antes de libertas, As palavras sonham. A emoção, então, prevalece E a razão se aquieta O sonho das palavras é destemido É urgente! As sensações estão presentes E as palavras brotam. Veem com os olhos do coração Ouvem o que com elas se parece E retumbam, céleres os seus anseios. Palavras vão, palavras sonham Sonhos utópicos e realizam o seu espanto... Destroem, constroem em devaneios O destino a elas se apresenta em forma de labirinto Um rascunho, pelo meio...incompletas... À moda de mensagens certeiras, destemidas. Ilegíveis, inaudíveis? Talvez... Mas, por vontade, realizáveis São fortes as palavras tímidas... A mesma natureza, que as move, Faz do rascunho que elas montam O percurso das ideias proibidas Em busca da fresta que as conduza Por aquelas zonas indecifráveis. Por que, então, o sisudo discurso Em tensos rompantes, já esquecido? Discurso inaudível, invisível sim Pois as palavras ditas se esvaem ... As ai

Noite*

“O sol data o tempo interpretado nas ocupações.” Martin Heidegger Eu não sei se a solidão maior é estar sozinho ou é estar diante das certezas absolutas da vida. Se a certeza é uma definição, o absoluto de todas as coisas afunda-se nas incertezas de algo que é coisa do humano, demasiado humano.  Estamos envolvidos até a morte com as certezas.  O sujeito chega e solta sua sentença, ele vem com suas armas de morte, não de vida, pois a vida está bem distante das certezas do sujeito que as sentencia. É melhor tomar conta da vida que simplesmente desaparecer. *Prof. Dr. Luis Antonio Paim Gomes Filósofo. Editor. Livre Pensador. Porto Alegre/RS

Clarice Lispector entrevista Pablo Neruda*

Clarice Lispector — Você se considera mais um poeta chileno ou da América Latina? Pablo Neruda — Poeta local do Chile, provinciano da América Latina. Clarice Lispector —Escrever melhora a angústia de viver?   Pablo Neruda — Sim, naturalmente. Tra­ba­lhar em teu ofício, se amas teu o­fí­cio, é celestial. Senão é infernal. Clarice Lispector — Quem é Deus?   Pablo Neruda — Todos algumas vezes. Nada, sempre. Clarice Lispector — Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?   Pablo Neruda — Político, poético. Físico. Clarice Lispector — Como é uma mulher bonita para você?   Pablo Neruda — Feita de muitas mulheres. Clarice Lispector — Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?   Pablo Neruda — Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos? Clarice Lispector — Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?   Pablo Neruda — Acredite-me tolo ou patriótico,

Leitor incomum*

“(...) Suas palavras chegavam aonde outros não conseguiam.”                     Virginia Woolf Um dizer protagonista aprecia surgir na vida do texto. Sua mensagem parece se divertir em passar despercebida a primeira vista. A textura inaudita ressoa poesia, musicalidade, convida ao sonho da vida real. Sua eficácia parece estar associada à multiplicação dos significados, reinvenção dos sentidos, descrição de um discurso a se traduzir como a própria autoria. Com ele a pluralidade de eventos, personagens se desdobra nas páginas da obra, uma trama convidativa às transgressões do leitor singular.    A essência da leitura parece ser a qualidade da interseção entre autor e leitor. As revisitas ao teor discursivo inicial, recheado de nuanças, brechas, incompletudes, dão boas vindas ao estranhamento dos originais. Esses momentos restariam perdidos sem a aptidão multiplicadora das palavras.      Uma de suas expressividades é apontar o que não pode ser dito naquilo que se di

Os Ombros Suportam o Mundo*

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. *Carlos Drummond de Andrade

Milagres*

Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa de especial? Por mim, de nada sei que não sejam milagres: ou ande eu pelas ruas de Manhattan, ou erga a vista sobre os telhados na direção do céu, ou pise com os pés descalços bem na franja das águas pela praia, ou fale durante o dia com uma pessoa a quem amo, ou vá de noite para a cama com uma pessoa a quem                                                                                      /amo, ou à mesa tome assento para jantar com os outros, ou olhe os desconhecidos na carruagem de frente para mim, ou siga as abelhas atarefadas junto à colmeia antes do meio-dia de verão ou animais pastando na campina ou passarinhos ou a maravilha dos insectos no ar, ou a maravilha de um pôr-de-sol ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes, ou o estranho contorno delicado e leve da lua nova na primavera, essas e outras coisas, uma e todas — para mim são milagres, umas ligadas às outras ainda

O Artesão das Manhãs*

Quando nasci, as manhãs tinham tonalidades de esperança. Meu primeiro sorriso guardava a pureza das flores mais belas. A liturgia do tempo sacramentalizava minha simplicidade. Descobri-me ser humano antes mesmo de saber que eu viria a ser. Fui tecido com tramas de amor e pontos de ternura. Construí-me na pluralidade das descobertas e na singularidade dos meus gostos. E foram tantos os desgostos, que de agosto a agosto as estações foram cumprindo seu ritual de invernos e primaveras. Hoje encontro-me em tempos que não me reconheço e em abraços que nunca recebi. Convivo com saudades que ainda não sei nomear. Descubro-me feliz em meio a infelicidades. Continuo sendo recortado por palavras que no fio do silêncio sangram minhas memórias. A dor de tantos anos reaparece em noites estreladas que ao longe reacendem as esperanças de um novo alvorecer. Saudade define meu ser que nas tardes sem perspectiva aos poucos repousa nos antônimos de meus medos.  Tantos verbos sem ação. Tan

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