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Inocência*

“Mas quanto mais me tornava transparente e leve, mais meus despojos cinzentos ganhavam consistência para seus sentidos fatigados.” Pierre Klossowski Imagino meu corpo além do meu corpo. Além, um pouco mais distante do que hoje sou. Bem antes, quando bem pequenino ao lado de minha mamãe. Bem ao lado, sentadinho em um banquinho, enquanto ela cuidava de minha avó enferma. Estava ali, ainda sem a consciência real das coisas, nada a perder, e o lado humano de estar à deriva da lógica da vida.  A vida dos homens não existia. A inocência e a vida, brincava com o Nada: suprema maneira de ser apreendida pelo pequeno Ser. Uma alegoria do impossível, desde que, hoje, já não sei o que estava a viver. Construí esse mundo, através do imaginário de minha mãe, pude ir além do que hoje posso compreender.  Falava sozinho, como um humano que ainda está a ver o mundo, o poente é mais distante hoje. Minha mãe cuidava de sua mãe, olhava-me com lágrimas de dor e felicidade. Essa é uma

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Em nenhum outro sentido a palavra 'espírito livre' quer ser entendida: um espírito que se tornou livre, que voltou a tomar posse de si mesmo" "(...) reconheci que havia chegado o tempo de me voltar para mim mesmo. De uma vez por todas ficou claro para mim, de uma maneira terrível, quanto tempo já havia sido desperdiçado (..)" "(...) o fato de que a humanidade até hoje esteve nas piores mãos, de que ela foi regida pelos malogrados, pelos vingativos-astutos, pelos assim chamados 'santos', esses caluniadores do mundo e violadores do homem" "Quando se desvia a seriedade da autoconservação, da fortificação do corpo, quer dizer, da vida, quando se faz da anemia um ideal, quando se constrói 'a salvação da alma' sobre o desprezo ao corpo, o que é isso se não uma receita para a décadence ?" "Com a 'aurora' iniciei, pela vez primeira, a luta contra a moral da renúncia a si mesmo" "(..

Escrever as palavras*

Escrever é gravar As palavras para sempre. Falar é jogá-las Ao vento. Sentado no chão Colhi as ervas Para a minha cura. Ajoelhado, rezando Apanhei as flores À tua procura. Deitado, sonhando Sobre o nosso leito Inventei você mil vezes. Escrevendo Eternizei você Para todo o sempre. *José Mayer Filósofo. Livreiro. Poeta. Especialista em Filosofia Clínica. Porto Alegre/RS

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Suponho que haja tantos credos, tantas religiões, quantos são os poetas" "(...) há duas maneiras de usar a poesia (...) Uma das maneiras é o poeta usar as palavras comuns e de algum modo torná-las incomuns - extrair-lhes a mágica" "(...) Quando penso em amigos meus tão caros como Dom Quixote, o sr. Pickwick, o sr. Sherlock Holmes, o dr. Watson, Huckleberry Finn, Peer Gynt, etc. (não estou certo se tenho muito mais amigos) "(...) de súbito a palavra ganha vida" "(...) imagino que uma nação desenvolve as palavras de que necessita" "(...) uma língua não é, como somos levados a supor pelo dicionário, a invenção de acadêmicos ou filólogos. Ao contrário, ela foi desenvolvida através do tempo, através de um longo tempo, por camponeses, por pescadores, por caçadores, por cavaleiros. Não veio das bibliotecas; veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da aurora" "(...) gostaria de dizer que cometemos um

As palavras iniciais*

As expressões preliminares possuem um teor de anúncio de incertezas. Sua linguagem cifrada, em um discurso incomum, abre espaço, compartilha desafogo, reapresenta as formas do indizível. De antemão, tem-se um imenso nada a se mostrar na crise desconstrutiva pessoal. Essas palavras desarticuladas realçam um caos subjetivo em ação. Nesses conteúdos de rascunho, já se pode vislumbrar endereços existenciais, descrever a novidade chegando. Por esse começo é possível investigar o mundo das vontades, das representações. Nos ditos de assunto imediato, nem sempre confirmados no discurso posterior, os relatos oscilam em busca de legitimidade. A partir desse acolhimento, pode-se qualificar a relação clínica, regular o ângulo da visão, ajustar a lógica desse encontro singular. O teor de con-fusão entre o passado e o agora passando, além de traduzir um viés im-paciente, proporciona atenção a esse sujeito em estado nascente. Após essa antítese com as anterioridades

Por Não Estarem Distraídos*

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande po

Buen Camino*

Depois de atravessar o Caminho de Santiago andando, passei a gostar de caminhar. Solitário ou em grupo, nunca fiquei só, mesmo que não houvesse ninguém a meu lado. O pensamento se tornou meu companheiro de viagem. O corpo também assumiu papel determinante e passou a mostrar o valor de cada unha, cada dedinho do pé, cada quilo a mais por carregar. Muitas vezes não havia ninguém para compartilhar o raiar do dia, uma cafeteria cheirosa escondida no meio do nada, uma cegonha trazendo comida para os filhotes. Batia fotos, mas por melhor que fosse a câmera, não conseguia transmitir a euforia daqueles momentos. Ficava com aquelas imagens e sensações guardadas em mim. Houve uma noite especial em que me senti só. O peregrino russo tirou o violino da mochila e começou a tocar no pátio do albergue. Logo um casal de gregos passou a cantar e vários outros dançavam depois de quilômetros rodados e pés cansados. Ali, apesar de estar rodeado de pessoas, senti que estava carente e precisava

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Há sabedoria em conviver com o raio. Apanhar o momento único em que o raio luz: uma ideia, um som, momento que não se repete nunca mais, capaz de gerar ideias e palavras e sons" "Heráclito vê, entretanto, na linha traçada sobre a curvatura do vaso, a convergência dos contrários, pois aí a linha reta se dobra" "O médico e o paciente foram escolhidos como exemplo da convergência dos contrários" "O rio de Heráclito rasga um curso de dois mil e quinhentos anos na literatura ocidental, recolhendo as águas de afluentes que nascem em todas as épocas. Os poetas não resistem à força de suas imagens. Combatendo os poetas, ele os atraiu. Mandou silenciar a voz dos poetas nos concursos sem molestar o poeta que trazia em si mesmo. Não silenciaria voz alguma o pensador que compreendeu o universo na contradição" "Não contemplamos o mundo de fora, como se assistíssemos a um espetáculo sentados na platéia" "Estamos sem med

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