Vamos admitir: não
somos mais do que nos fizemos com nossas próprias escolhas, quase sempre
substituindo o esforço da esperança pelo seu inverso, acostumando-nos a tomar
por verdadeiro que já somos o que ainda esperamos realizar. Como sempre houve
muitas pequeninas e importantes coisas para serem feitas na concretização dos
nossos sonhos, todo aquele que espera nunca alcança.
Há quem diga ter fé sem
nunca haver sentido esperança. A primeira é uma certeza absoluta, uma
consciência quite consigo mesma, que se satisfez com alegria em haver entregue
tudo de si, permitindo suportar todo sacrifício do mundo, pois já se encontra
confiante que Deus lhe aceitou no reino dos céus. Ter fé em Deus, na concepção
cristã, não significa crer que Ele nos livrará das dores e desafios. Nunca
poupou nenhum santo. Ao contrário, ter fé é aceitar de bom grado a cruz dos
próprios pecados ou erros e perdoar-se responsavelmente, assumindo as conseqüências
com a cabeça erguida e doçura no olhar. Como se vê, a exemplo maior de Cristo,
a fé não salva nem recompensa neste mundo. Mais ainda, após receber na face a
malícia, a traição, a violência e a crueldade dos maus, perdoá-los. Desde
sempre, onde há tantas injustiças, a única escolha é a de como sofrer. O amor
retira as queixas inúteis e se oferta com alegria. Quem tem fé não pede
solução, desfaz os problemas humanos sob a vontade do mais alto. Entrega-se e
corajosamente agradece, pois tudo o que lhe vem antes da morte é antecipação do
céu, degrau por degrau. Nada mais difícil nem mais poderosamente simples.
A esperança é digna dos
homens comuns e tem por sinônimo a lucidez da liberdade de escolha e a coragem
da escolha da liberdade. Sim... são
coisas bem distintas, como sabia o filósofo Erich Fromm. Com resumo, desde que
o indivíduo esteja de posse de uma mínima capacidade de raciocinar, 1. Todo
homem é livre para escolher, em sua inevitável liberdade natural de pensar. 2. E, considerando os maus caminhos e os vícios que já não conseguimos facilmente
nos desprender, apesar dos esforços, todavia podemos nos livrar de muitos
estados de dependência que nos aprisionam. Liberdade negativa, que pode ser
entendida como uma “liberdade de”. 3. Por fim, quem bem mereceu livrar-se do
mal e do peso de seu passado está “livre para” progredir, conquistando
fronteiras ainda desconhecidas em sua intimidade e inovando a vida com os
acréscimos do bem. Vive então uma profunda liberdade de avanço. Mais que
selecionar alternativas, antes, tal liberdade cumpre saber criá-las. Entendido
isso, o homem que não se cria é cria dos outros.
Em se tratando de
caráter, o homem não se torna livre, nasce livre e se torna escravo de suas más
escolhas. Mas ao exercitar os músculos morais da esperança pode ainda se
libertar de suas próprias paixões e, vencendo a si mesmo, renascer melhor ou
nascer completamente para o propósito a que veio. E se tiver fé poderá vencer o
mundo que o oprime, pois aquele que não teme a morte é invencível por
definição. Quem vence a matéria deixa o corpo por testemunha. Na fé, o poder de
mover montanhas só pertence àqueles que já não têm mais o desejo desse poder.
Freqüentemente, a
ausência de criatividade, da doação amorosa de nós mesmos nos leva a querer
roubar dos outros o resultado de seu merecido progresso. É a inveja, sempre
acompanhada do sentimento de vingança sobre aqueles que revelam nossa fraqueza
quando nos exigem esforço próprio. Os heróis anônimos da sociedade, que lutam
para viver o melhor de si mesmos, cada dia um pouquinho mais, tornam-se
involuntariamente uma afiada lembrança das dívidas acumuladas que as más
consciências carregam consigo. A auto culpa é, dessa forma, a verdade despida
pelas próprias mãos que a trajaram de vergonha, de desonra e de pudor. Como bom
seria se pudéssemos nos aliviar da alfaiataria das carências alheias que tanto
nos desejam pôr na moda de suas ridículas medidas. Fosse assim conosco,
seríamos com os outros também? Há! quão triste é saber que a felicidade vizinha
nos incomoda com o peso da nossa ignorância irritada. Perigo que os fracos de
espírito oferecem aos fortes. Aparente paradoxo de Nietszche: a força deve
temer a fraqueza. Porém a verdade se revela ainda maior: mau é quem causa temor
e bom aquele que não tem nada a temer. Por que não haveríamos de julgar o lobo
bom e o cordeiro mau, se entre os animais nenhum é ruim? Os gregos e romanos
antigos pensariam assim. Porém, a interpretação judaico-cristã substituiu o
valor da força pela astúcia, o orgulho da honra pela culpa, e a moral dos
senhores, pela dos escravos. Quem não soube ser cristão ao ponto de não se
curvar ao reino de César, preferindo o auto-sacrifício à submissão, tornando-se
para si mesmo a verdade, o caminho e a vida, achou mais conveniente o
discipulado da obediência, da vaidade e covardia de se sentir religioso. Foi
assim que lenta e profundamente a imitação cristã tomou lugar da iniciativa de
Jesus. Quando toda a Europa tornou-se cristã, pareceu mais lógico o Império
Romano fazer do cristianismo sua religião oficial. Afinal, foi bem mais fácil
governar apontando rijo o dedo de Deus sob os pecados do mundo em cada coração.
Porque a dúvida
constante instiga a análise e porque a deficiência é indiscreta, é
infinitamente mais cômodo forjar a fé, fingir-se bom e, mentindo para si mesmo,
convencer os semelhantes do que lhes é comum: “o inferno são os outros”, como lembrava
Sartre. Afinal, é preciso fazer alguma coisa com esse lixo psíquico que se
acumula na alma dos que preferem a certeza de que tudo um dia se resolverá sem
ao menos guardarem a demorada esperança nos conflitos de viver os problemas
cotidianos. É por isso que não é assunto popular os heróis e santos de nossa
época. Hoje em dia não basta ter força de lutar corajosamente e ser herói, é
preciso ser “super”, bonito e ainda usar roupas coloridas. Quem hoje pretenda
adquirir a estatura de santo, convém fazer um bom curso de marketing e
televisão, sobre “a arte de falar em público”, sobre como ser um líder da
coletividade de “auto-ajuda” e, é claro! ter muito orgulho de ser humilde.
Engana-se quem pense que os grandes homens da antiguidade clássica ou medieval
não eram também reconhecidos em sua época, pois o cinismo é uma estrutura
social moderna. Naturalmente, o tempo melhora o entendimento.
Fenômenos como essa
falsa fé, essa mentira que se assemelha à verdade pela mera força da convicção,
é chamada de “má-fé”. O inquilino da fé alheia, que só se convence doutrinando
os outros sob o argumento de que a maioria não pode estar errada, é tão mais
covarde quanto mais líder e popular. Em tese, deveríamos ser, para cada milagre
recebido, os próprios doadores, e não mendigos de preces de reclame e
sacerdotes de profissão. A passividade de se esperar por um milagre alheio,
vindo da “sociedade”, de um futuro próximo ou de um deus que não atue através
das forças da alma, resultaria num ódio ao trabalho dos que são verdadeiramente
heróis em cada gesto de autêntica bondade, o que se revela em antipatia
“gratuita” àqueles que são, de alguma forma, alegres e independentes. Seria
preciso aqui explicar porque Jesus – que não deu outro sentimento que não o
amor, nem outra sabedoria que não o exemplo – foi tão odiado? O verdadeiro dolo
cristão não foi ter posto na cruz o doce rabi da Galiléia, pois em sua época,
defronte os seus olhos, não o fizéssemos já seríamos bons. Não, é precisamente
o oposto: nosso mal está na hipócrita redenção dos pecados em cada ritual de
purificação. Não é estranho que o mal se redima tão facilmente com preces e
adorações públicas de louvor e, uma vez aliviada a culpa, recomeçarmos a mesma
trilha de onde paramos?
Não há mal em ser mau,
conquanto seja esse o nosso verdadeiro tamanho e neste conhecimento resida
nossa humildade e nosso desejo de progresso. A fraude consiste e se delata em
sentir-se bem, por se crer bom, dizendo-se um pecador, mas com sentimentos de
impaciência quando o outro possui as mesmas faltas. Amar o próximo como a si
mesmo muitas vezes é perdoar-se, curar as acusações na fonte. Mas nem sempre.
Quem não se perdoa, tudo bem... pode ainda ser legítimo cristão, basta que, por
isso, não acuse ninguém. Ora, nem sempre é preciso primeiro se amar para amar
os outros. Por que haveria de ser isso uma regra? Os que teimam em fazer da lei
de amor uma penalidade a ser cumprida rigorosamente e sem descanso a si
próprio, fazem dos sentimentos um grilhão e da ternura um castigo. E não
suportando a leveza de um sorriso sincero, deixam cair sobre a face o peso da
mentira, mostrando os dentes. Amar o próximo como a si mesmo tem dupla
interpretação, e pode facilmente ser compreendido como o mandamento do egoísmo.
Dizendo essas coisas,
os filósofos provam o seu valor. Percorrêssemos a história da filosofia,
inevitavelmente adiantaríamos séculos de maturidade. Todavia, nunca é demais
recomendar o conselho do grande escritor francês André Gide: “Crê nos que
buscam a verdade. Duvida dos que a encontraram”. Fossem aqui chamados outros
filósofos para a reflexão, continuaríamos em muitas páginas, quem sabe por
horas a pensar sobre os dramas da humanidade em sua jornada de
espiritualização. É bastante comum, quando se diz filósofo, alguém perguntar:
“qual é o seu filósofo preferido?”, como se tratasse de uma distração, de uma
vaidade favorita. No entanto, ler, escrever ou pensar filosofia com
honestidade, sem auto-engano, é tão sofrido quanto deixar morrer nossas crenças
e ilusões mais queridas, tão aceitas e necessárias como a própria carne. Quem,
refletindo, em nada se altera, o que fez realmente com seu tempo além de
envelhecer? Mas, a filosofia, igualmente, é tão bela e poderosa que toda mínima
lucidez conquistada vale um pouco do direito de renascer melhor, de ser outro
para si mesmo a cada nova idéia. Ela nos faz lembrar de quem queremos ser, no
bem-aventurado tempo da esperança.
Mal acostumados com um
milagre súbito, para o espanto dos olhos, desejamos ver a cura dos cegos,
alguém andar sobre as águas, abrir os oceanos e, retirando um coelho branco da
cartola, ouvir a multidão aplaudindo. Ah, como é bom ser criança! Viesse o
milagre pela filosofia, tudo se resumiria assim: “para ser feliz, pense nos
outros”.
*Will Goya
Filósofo Clínico
Goiânia/GO
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