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Quando a Filosofia é Cura*

Notadamente brasileira, mais especificamente gaúcha, da província Rio Grande do Sul, a Filosofia Clínica surgiu na década de 1990 com muito estranhamento e incompreensão. Como sempre ocorre com toda metodologia inédita, sofre descrédito e alguns ataques pusilânimes. Tive a sorte de frequentar uma das primeiras turmas na cidade de São João del-Rei, em inícios dos anos 2000 e fui ver de perto a aplicabilidade, ao menos teórica.

As aulas foram ministradas pelo competente e carismático Hélio Strassburger e resumindo o máximo para caber em uma resenha, a abordagem ia além da filosofia de aconselhamento e mergulhava fundo na investigação das causas de nossas estruturas de pensamentos e dores existenciais. Adendo: sempre que utilizar o negrito trata-se de definição da nova disciplina. Assim sendo, nos referíamos ao termo como EP. Mas cabe aqui uma ressalva; os detratores foram alguns psicólogos e psiquiatras, que viram na abordagem da disciplina uma concorrência desleal.

A grande batalha de Lúcio Packter, inaugurador da Filosofia Clínica, foi humanizar os tratamentos com os classificados como loucos. Não é preciso ir muito longe para sabermos que a Psicologia trabalha com a tipologia e as descrições de algumas manias, indo além na psiquiatria com a concepção de loucura e amparados em doses cavalares de psicofármacos, observamos verdadeiramente alguns zumbis. Muitos dos quais foram solenemente encostados e vivem (?), aliás, sobrevivem de renovação de receitas pesadas. O senso comum determina que algumas pessoas são loucas.

“A loucura é um conceito político.” A advertência do sociólogo e filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) já nos previne de bastante coisa. A Filosofia Clínica busca abordar o ser humano em toda a sua complexidade, escutando-o atentamente e alterando a terminologia na forma de tratamento. Sai a concepção de paciente e entra a de partilhante. E isso faz uma grande diferença, uma vez que na partilha ocorre uma interseção maior de conhecimento e o poder de autoridade de quem manda se esvai. Uma investigação aprofundada a partir de Como o mundo me parece, herdado de um dos grandes filósofos da História, o alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). Remete diretamente ao seu clássico O Mundo como Vontade e Representação.

Passadas duas décadas de minhas primeiras aulas, reconheço hoje a imensa bibliografia utilizada pelos clínicos e a comprovação de que a filosofia deve ser vivida na prática, hoje bastante deturpada pelos academicismos e pela fogueira de vaidades de alguns doutores (pseudos) do saber. Resumindo um pouco, a Filosofia Clínica te faz mergulhar em si mesmo, na máxima socrática do “Conhece-te a ti mesmo” e conhecer a si mesmo nestes dias já é uma grande conquista.

O correio me entrega um pacote, bem às vésperas do Natal, feliz coincidência, e nele está o livro a mim autografado do meu querido professor Hélio Strassburger: Filosofia Clínica, Anotações e Reflexões de um Consultório. Ilustrado por Márcia Baroni, o livro editado pela Editora Sulina/RS, em outubro de 2021 tem 335 páginas. 

Lendo-o, me remeti às aulas presenciais com o mestre e pude conhecê-lo um pouquinho mais. Acrescido ao seu talento nato para lidar com seres humanos, percebi o espírito combativo mais contundente na acusação a alguns falsos doutos e alguns detentores do saber. Acomodado no seu edifício construído pedra por pedra? Nada disso. Surpreendentemente, soube do rompimento amigável e elogioso com o iniciador do método, e a Casa da Filosofia Clínica voltando ao seu ninho em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, perfaz o espírito audaz, aventureiro e extremamente metódico de Hélio. 

Lembrei-me de um aforisma de Friedrich Nietzsche (1844-1900) que afirmou certa feita que chegaria determinada hora em que o aprendiz teria que assassinar o antigo mestre, para assim se tornar mestre também. Trocando em miúdos, Lúcio e Hélio são espécies de Messi e Cristiano Ronaldo, e não se trata aqui de saber quem é melhor. Compreendi a cisão como a daquela confeiteira que começa a fazer bolos saborosos na garagem de sua casa. Todos tomam gosto pela coisa e os bolos são magníficos. Cresce-se a clientela e a produção, sendo que aquela confeiteira tem que contratar auxiliares para continuar entregando os bolos. 

O que ocorre? Quando a coisa toda se transforma em um grande case de sucesso, o sabor daquele bolo feito à mão já não será mais o mesmo. Percebi Hélio puxando as orelhas de alguns profissionais de clínica, caindo exatamente naquilo que é combatido e na esparrela que não poderiam cair: a tipologia. Mas Hélio escreve isso elegantemente, sem provocar polêmica pela polêmica. Mas que o sujeito é bom de briga, isso é.

O livro oferece um cardápio riquíssimo. Recheado de citações de grandes filósofos, servirá-me de propedêutica para alguns desconhecidos. Tudo muito bem concatenado, mas à medida em que lia percebi certas passagens empoladas. Persisti e lá para o meio algum regato no meio da floresta densa e por vezes impenetráveis. Um enxerto, a meu ver desnecessário, de frases desconexas de consultas, obviamente que sem nomear as pessoas, e uma entrevista ao final onde é acusado de ser obtuso. Incrível foi a resposta onde Hélio admitiu isso, compreendendo perfeitamente o tal do como o mundo me parece. Com honestidade intelectual, teria e tenho que escrever o que penso e sinto, por isso o gosto pela leitura da obra em si foi médio.

Mas aqui cabe uma ressalva: na clínica aprendemos a forma de expressividade muito particular de cada um, e lembrei-me de Hélio nos relatar a extrema timidez de um dos maiores escritores cômicos da cena gaúcha e brasileira, Luís Fernando Verissimo. Quando foram homenagear o seu pai, Érico, ele de posse do microfone baixou as vistas e disse somente: “Obrigado!”. Multifacetado que somos todos, se fica a dever na clareza de suas ideias, em contrapartida é generoso no abraço sincero e na explanação metódica de suas aulas, no comando absorto de seus cafés e no entendimento da plasticidade das artes como um todo, Hélio é generoso por demais por nos confidenciar o seu caderno de anotações.

Um livro que guardarei na estante de meus sentimentos, na relação aprendiz-mestre. Mas tão cedo não espero assassiná-lo...

*Marcelo Pereira Rodrigues

Filósofo. Escritor. Palestrante. Editor. Filósofo Clínico. Livre Pensador.

Conselheiro Lafaiete/MG

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