Pular para o conteúdo principal

Postagens

Quando a Filosofia é Cura*

Notadamente brasileira, mais especificamente gaúcha, da província Rio Grande do Sul, a Filosofia Clínica surgiu na década de 1990 com muito estranhamento e incompreensão. Como sempre ocorre com toda metodologia inédita, sofre descrédito e alguns ataques pusilânimes. Tive a sorte de frequentar uma das primeiras turmas na cidade de São João del-Rei, em inícios dos anos 2000 e fui ver de perto a aplicabilidade, ao menos teórica. As aulas foram ministradas pelo competente e carismático Hélio Strassburger e resumindo o máximo para caber em uma resenha, a abordagem ia além da filosofia de aconselhamento e mergulhava fundo na investigação das causas de nossas estruturas de pensamentos e dores existenciais. Adendo: sempre que utilizar o negrito trata-se de definição da nova disciplina. Assim sendo, nos referíamos ao termo como EP. Mas cabe aqui uma ressalva; os detratores foram alguns psicólogos e psiquiatras, que viram na abordagem da disciplina uma concorrência desleal. A grande batalha

Humanidade Encapsulada*

Vocês já  se depararam com profissionais que, de tão padronizadamente mergulhados no papel que representam, se pasteurizam tanto a ponto de encapsularem sua humanidade?! Há muito os tenho encontrado, nas mais diversas áreas. Percebo-os muito próximos, invadindo territórios esquecidos, não cultivados, abandonados. O assombroso é que o mercado não só ainda anseia como replica esses perfis, não raro fruto de linha de montagens do tipo: transforme-se em oito passos e seja você o sucesso! Sucesso que se traduz comumente no endosso do mesmo, ainda que travestido de diferente. Por um certo momento eu de fato pensei que essa Pandemia fosse suavizar o arrogante rompante de tudo conhecer e dominar. De reduzir visões de mundo ao enquadramento de nossos gostos e preferências, hermeticamente vedados e selados como se verdade fossem. A mais pura e absoluta. O resto é resto e que se dane, melhor ignorar… Nesse abissal individualismo o outro é aceito como igual, desde que reitere caminhos e nã

Uma arte de compor raridades*

Um novo lugar surge da interseção entre duas ou mais estruturas de pensamento, vínculo de convivência animado pela diversidade dos encontros. Essa nuance discursiva passa longe de um molde universal, incabível ao método da Filosofia Clínica.  A partir de uma sensação estranha, protagonista em uma história inédita, algo mais pode acontecer. Num esboço existencial compartilhado se apresenta alguém em vias de tornar-se. Ao olhar fenomenológico do Filósofo, acolhendo e descrevendo essas narrativas do Partilhante, se faz possível acessar esses desdobramentos de natureza singular. Eventos onde aparece e se elabora aquilo até então sem espaço para se contar.   Na perspectiva de um e outro, esse instante aprendiz qualifica o olhar sobre o mundo que o constitui e por ele é constituído. Ao acrescentar linguagens, desvendar rotas, emancipar territórios, revela uma arqueologia expressiva sob os escombros do antigo vocabulário. O conceito de singularidade, ao ser inclusão, se faz paradoxo às lógica

Linguagem e Singularidade*

A noção de linguagem que Wittgenstein apresenta nas suas Investigações Filosóficas, cuja concepção é a de que o significado das palavras depende de seu uso na linguagem, em Filosofia Clínica se traduz como um dos princípios dos cuidados de que deve ter o filósofo clínico na sua atividade clínica, nas acolhidas existenciais a que se dispõe, e que, adversamente às técnicas tradicionais da psiquiatria ou das psicologias tradicionais - que não fazem senão hermenêutica sobre o discurso ou expressividade do indivíduo – permitirá guardar o sentido mais original da palavra no contexto discursivo do sujeito, ou seja, respeitando ou limitando-se a entendê-lo a partir e à medida de um sujeito em seu território. Sendo um projeto único, permite-se acessar todo um vocabulário, recheado de significados singulares para cada expressão de sua semiose. Aquilo a que chamou “jogos de linguagem” refere-se, segundo o próprio Wittgenstein, aos vários usos das palavras e ao conjunto das atividades com as quais

O que é a Filosofia Clínica ***

A Filosofia Clínica, em uma nova abordagem terapêutica, é a filosofia acadêmica adaptada à prática clínica, à terapia. Não trabalha com critérios médicos, com remédios ou com tipologias na construção de uma proposta terapêutica cujo objeto é buscar o bem-estar do ser humano. O instrumental da Filosofia Clínica divide-se em três partes: os Exames Categoriais, a Estrutura de Pensamento e os Submodos. Nos Exames Categoriais, primeiro momento da clínica, através da historicidade, o filósofo clínico situa existencialmente a pessoa colhendo todas as informações de sua vida, desde as suas recordações mais remotas, até as informações de suas vivências mais atuais.   O material colhido, na história da pessoa atendida - que em Filosofia Clínica é chamada de partilhante, justamente pela condição de ser alguém com quem o filósofo compartilha momentos da existência -, é a base para o desenvolvimento do processo terapêutico.   A partir desses dados, num segundo momento, são verificados os tópicos da

Prática da Filosofia Clínica*

“Nesse sentido, a nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de seu ser sujeito em ação.” – Hélio Strassburger em: “ Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório ”. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2021 Pode ser que muitos que não sejam terapeutas e leiam as linhas acima.   se perguntem, meio frustrados ou estupefatos pela afirmação feita, “Mas não é assim com qualquer terapia séria? Não é assim que todas fazem? Como poderia uma terapia ser diferente disso? Então, qual é a vantagem da filosofia clínica ao afirmar tudo isso?” Vamos começar pelo maior contraste, já que, às vezes, o mais próximo é o mais difícil de enxergar as nuances. Hél

Coleção de Filosofia Clínica da Editora Vozes. Mais uma parceria de qualidade com a Casa da Filosofia Clínica.

 

Prendedor de Sonhos*

“pedaço de mar, iça, onde moras, sua capital, a inocupável.”     Paul Celan                                                       Vou no som do murmúrio das águas, das mãos estendo histórias sobre o dia até o sol se pôr. Da voz escorre a umidade das letras em pele e olhos negros se perdendo nas entranhas do tecido. Das vestes, cores roçando o corpo e dedos que dedilham mais uma pintura da carne, o toque na tela, um riso perdido no ar, o arejar das pernas no vento que traz o aroma da eternidade do tempo. Pendurar a vida nas cercas da casa próximo ao mar, deixar escorrer na leveza do amor morto na natureza, dormir relendo o noturno da insônia do ano que não acabou. Acordar em frente à janela escancarada do novo dia, um cheiro vindo da manhã com café e calor. O vento de chuva passou longe de meu sonho, do suor da vida acumulada pela idade, o correr cedo para ir nadar em fuga do que já é mofo, molhar a alma, folhear as ideias em nascentes de rios e livros que insistem em viver. Sec

Recortes do Cotidiano*

“(...) O rosto do silêncio é o olhar que se percebe através dele. São muitas as mensagens à espera das representações de não-dizer. Natureza de difícil acesso em seus contornos mutantes. Costuma deixar pistas nos sussurros contidos por entre os espaços da intencionalidade. Lá onde o indizível se contém em enigmas de silenciar. (...) Lugar para relação da liberdade reflexiva com uma sublime aptidão criadora. Espaço para reorganização do mundo. Tempo de seguir os vôos e mergulhos com esses fenômenos de aparência desestruturada. Um vislumbre para a intuição de originalidades contidas entre o ser e o nada da condição humana. Contradição em curso na negação que os afirma.                                                                           (...) Aparente vazio onde a inspiração inscreve suas ideias e delírios em forma de traço. Onde o ser se objetiva além da palavra. Interseção das ausentes realidades com o silencioso abandono das horas. As expressividades do silêncio podem elabora

Depoimentos compartilhados***

  Na correria do dia a dia, quase todo mundo já tentou controlar o tempo e sentiu em algum momento que não estava cumprindo como gostaria todos os papéis existenciais, seja o de filha, mãe, executiva, líder e tantos outros que assumimos ao longo da vida. Tudo isso causa uma ansiedade em nós e a pandemia aguçou ainda mais esse sentimento, não é mesmo?  Em uma época da minha vida eu vivi isso, um atropelo existencial que refletiu forte em mim. Sei o quanto é frustrante esse sentimento de que você se dedicou tanto no trabalho, mas no fim do dia percebeu que só encheu esse pote e os demais papéis de sua vida ficaram meio vazios. O que me ajudou a centralizar e enxergar tudo para me organizar melhor foi a Filosofia Clínica. Para quem não sabe, a Filosofia Clínica tem uma abordagem terapêutica e usa os conhecimentos filosóficos na prática. Um dos princípios fundamentais dela é a singularidade, em que cada pessoa é única e tem sua EP (Estrutura de Pensamento). Esse método pode ser aplicad

As palavras e o horizonte existencial*

Primeiranistas de graduação em Filosofia às vezes "refutam o perspectivismo" com o seguinte joguete lógico que remete a uma contradição: "Não há fatos - somente interpretações. Isto é um fato." Ou, na notação da lógica proposicional, P^~P P, logo não-P. Isto é: a afirmação de que não há fatos, mas só interpretações, conduz a uma contradição e, por conseguinte, não pode ser verdadeira. A refutação parece persuasiva, não? * * * O diabo é que as palavras não são planas. Há profundidades hermenêuticas variáveis em cada uma delas. No caso que expus acima, a primeira palavra "fato" corresponde ao plano ôntico, enquanto a segunda corresponde ao plano ontológico. Uma coisa são os "fatos" ("não há fatos") que lemos em um jornal, que sabemos numa conversa, que usamos para tomar decisões na vida. Outra coisa, bem diferente, é uma afirmação metafísica universal a respeito do funcionamento da estrutura da realidade ("isto é um f

Somos Instantes**

Aconteceu num instante, foi sem querer, não havia planejamento ou expectativa alguma. Ele a convidou para passarem juntos a noite em sua casa e ela aceitou. Só por hoje, respondeu timidamente. Nem havia clareado o dia, ela saiu para o trabalho, mal tiveram tempo de se despedir. Foi tão maravilhosa a companhia que ele a convidou novamente no sábado. Só por hoje foi como confirmou sua vinda. Muitas outras vindas aconteceram, mas a senha era sempre a mesma: só por hoje (SPH), jamais perguntava ou confirmava nada sobre o amanhã. Não necessitava dele para nada, mas era parceira para tudo. Era livre e assim o deixava. Numa destas noites frias do inverno gaúcho, enquanto se aqueciam em abraços, sussurrou em seu ouvido esquerdo que estava apaixonada. Com voz rouca e melosa frisou que “estava” apaixonada, não que “era” apaixonada. Especialmente naquela noite estava se sentindo muito apaixonada. Muitas outras declarações, agora mútuas, aconteceram seguidas da já bem conhecida senha “só por hoj

As dores e as delícias do estudo da Filosofia Clínica*

Andei perdida de textos escritos, pensei que esse lado escritora meu havia se perdido por entre a vida corrida do dia a dia. As palavras iam e vinham na minha mente, mas eu não conseguia capturá-las com precisão. Terminando a pós esse ano me deparo com o trabalho final e petrifico entre mil e uma ideias. Conflitos, incertezas, questionamentos, dúvidas quanto a tudo o que aprendi e tudo que experienciei... Sinto-me mais conhecedora das minhas sombras e da minha luz. Entretanto, questiono o porquê dessa escolha dentre tantas outras que envolvem a filosofia. Sempre tive vocação para as questões existenciais, seja na minha representação de mundo, como na representação de mundo de outros. Mas vir a ser - filósofa clínica - é uma tarefa delicada que me faz temer muitas coisas. Ser cuidadora é algo muito frágil e precioso. Tenho percebido carências tão primárias nas pessoas com as quais convivo que penso se realmente há uma segurança de "melhor viver" através de qualquer terapia

Visitas