A descrição da loucura, como um
fenômeno errático na relação com a realidade consensual, contribui para revelar
sua face de cara-metade. Longe de integrar um constructo único e coerente,
desdobra-se na pluralidade das perspectivas entreabertas.
É improvável que a verdade
delirante se estruture em um lugar onde as experiências concretas não exerçam
influência. Como anfitriã, aprecia acolher os ditos da normalidade, ainda
quando essa lhe propõe alguma forma de distorção.
Uma e outra referem vestígios de
intimidade. O tempo subjetivo dos devaneios intervém no espetáculo da
realidade. Enquanto o louco é capaz de simular ditos razoáveis, a pessoa normal
também pode expressar acessos de insanidade. As diferenças parecem estar
relacionadas aos conteúdos, significados e distanciamento de alguma tradução.
Na perspectiva de cada um, a vida
se apresenta como um devir singular. Mesmo quando experiencia seus dias como se
todos falassem a mesma língua.
Umberto Eco, em uma estética dos
vislumbres: “As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora, visam, no fundo, além
de suas aparências bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do homem
novo, que vê na obra de arte, não um objeto baseado em relações evidentes, a
ser desfrutado como belo, mas um mistério a investigar, uma missão a cumprir,
um estímulo à vivacidade da imaginação”. (Obra Aberta, 2005).
Essas forças gigantescas, quando
combinadas, realizam diálogos de longo alcance entre o centro e a periferia do
sujeito. As influências de lado a lado da interseção deixam rastros na versão
pessoal inconclusa. Entrementes de ser forasteiro, pode antever verdades à
deriva e sem meios para conviver com rumores de interdição.
Uma epistemologia permanece
subentendida na ótica difusa. Mesmo nas instituições como: família, escola,
igreja e universidades, já se pode perceber o ensino-aprendizagem impregnado de
exclusão. Aos presságios inéditos, a pessoa pode escolher a reclusão dos
exílios para estruturar seus dias. O limiar existencial onde o partilhante se
situa, aprecia exercícios de autonomia. Ao transformar-se, modifica o mundo
inteiro ao seu redor.
É significativo recordar que ao
ver um filme como “Jornada nas estrelas” o sujeito depois do cinema pode
reestruturar-se de acordo com os agendamentos da película. À razão assim constituída,
o enredo cinematográfico prossegue. Inexistem diferenças entre a realidade da
ficção e a realidade empírica, pois uma e outra se integram no olhar-sentir
difuso e as demais realidades. Umas e outras integram o olhar-sentir obtuso da
pessoa, para a qual a verdade lhe pertence.
Talvez a manifestação estética se
faça entender na diversidade, até então ofuscada pela ditadura da normalidade.
Expressividade das múltiplas mensagens nas lógicas da evasão. Um saber
divergente se antecipa na entrevista das recusas.
Nas sobras, desvios ou excessos
vislumbra-se um espectador de uma vida que parece não lhe pertencer.
Sartre refere que: “Se as
palavras se aniquilam umas às outras, se se desfazem em pó, acaso não surgiria
por trás delas uma realidade finalmente silenciosa?” (As Palavras, 1964).
As rotas de fuga e os esconderijos
possuem autogenia imprecisa e de altíssima velocidade. Esse mundo
incompreensível só compõe suas gramáticas quando os desdobramentos existenciais
deixarem de ser intervalo.
É legítima a especulação sobre o
lugar da alienação. A partir dela se faz possível ingressar no seleto clube dos
que não descartam convívios com a epistemologia da loucura. Os atalhos, como
referência preliminar, podem aproximar mundos de aparência distante, mesmo
quando as incógnitas multiplicam espantos de senso incomum.
Nesses episódios uma conexão
veloz desestrutura-se, por onde o sujeito desloca-se na vastidão das
abstrações. Mesmo quando os vocabulários adquirem contornos de realidade, as
lógicas delirantes prosseguem num veículo sem freios.
*Hélio Strassburger in “Filosofia
Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Editora E-Papers/RJ. 2009.
**Essa obra, ao destacar o tema
da autogenia, até essa época desmerecido nos cadernos iniciais, serviu como fonte de inspiração ao que veio depois...
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