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Psicologia do Psicólogo*

Fundamentalmente é preciso compreender que em filosofia clínica o terapeuta não dá conselhos nem opiniões. A opinião do terapeuta não interessa de maneira alguma. Sua visão de mundo, sua perspectiva pessoal, seus juízos de valor não têm a mínima serventia em filosofia clínica. Ao contrário, contaminam e prejudicam o processo terapêutico.

A postura fenomenológica do terapeuta, aquela postura que reage ao que aparece, mas somente depois de compreender de forma ampla o que é que está aparecendo, é para proteger o partilhante (partilhante é o nome que damos àquele que faz a terapia com um filósofo clínico). Proteger de quem e de quê? Proteger do próprio terapeuta, pois ele é uma ameaça potencial se invadir com suas opiniões e juízos pessoais o que vem da narrativa do outro. O terapeuta é a primeira “peça” que pode invalidar a terapia, se resolver dar sua opinião ou aconselhar segundo suas perspectivas pessoais.

Então, quando uma partilhante pergunta ao terapeuta “o que devo fazer?”, se o terapeuta já tem uma noção ampla da estrutura interna dele e dos seus modos de ser no mundo, poderá entabular um diálogo em construção compartilhada mostrando o que percebe, o que vê no outro e mostrar sua percepção para que o partilhante valide ou não essa percepção. E somente após esta validação do partilhante é que o terapeuta está “liberado” para falar de forma mais dialogada, mas nunca dando opiniões ou conselhos através de sua perspectiva pessoal.

Quando um amigo meu foi ao psicólogo e contou sua problemática ou questão urgente, da qual é uma adição de comportamentos, coisas a resolver, muitas frentes a atuar e todas essas ao mesmo tempo com muitas questões importantes, urgentes e necessárias de atuação, e por isso mostrou toda sua ansiedade e sofrimento e o psicólogo, depois de ouvir uns 40 minutos na primeira sessão entre eles, diz “Está claro que seu problema é que você faz tudo para todos e não tem apoio algum, e que então precisa sair desta situação de qualquer forma”, qual é a forma de compreender isso o que disse o terapeuta?

A pergunta que faço é a seguinte: qual autor ou teoria psicológica está por trás desta frase do psicólogo? E outra pergunta: qual é a justificação metodológica ou terapêutica para essa frase que ele disse?

Para a primeira pergunta, a resposta, para mim, é clara: não há autor ou teoria psicológica nenhuma nesta frase, mas simplesmente a opinião e perspectiva pessoal do psicólogo. E isso é de um erro ético absurdo, pelo menos em filosofia clínica. Pois querendo ou não o psicólogo – como qualquer terapeuta, inclusive o filósofo clínico – está investido socialmente de uma “capa” de “especialista”, de que quando fala sabe do que está falando e de que tudo o que diz está amparado por amplos e profundos conhecimentos oriundos de estudos e da prática. Por isso que o terapeuta deve ter todo o cuidado para expressar qualquer afirmação ainda mais sobre o outro. Nada que sai do terapeuta é inócuo, incolor ou insípido.

Outra coisa com esta frase do psicólogo é que ela é completamente ambígua, polissêmica. Pode se dar qualquer interpretação que se queira. Uma afirmação ao mesmo tempo perigosa e vazia. E, em um momento de desespero emocional, meu amigo poderia ter interpretado essa frase de muitas e muitas maneiras. Uma das quais foi ter que se separar de sua esposa de mais de 30 anos de casamento. Afinal, ele tinha que ter um “ponto de fuga”, uma orientação para uma ação rápida, pois sua vida estava à beira do precipício. E o psicólogo deu essa “orientação”.

Para a segunda pergunta que faço, sobre qual é a justificação metodológica ou terapêutica para essa frase dita pelo terapeuta, a resposta é que não há. A psicologia e a psicanálise se preocupam tanto com a transferência e contratransferência entre seus pacientes/analisandos exatamente porque a fronteira entre as afirmações dos teóricos e teorias que eles estudam e as suas próprias subjetivações pessoais em forma de juízos de valor é tão tênue que tudo se confunde com a maior facilidade. A postura, muitas vezes, é de distanciamento, mas quando abrem a boca é sua opinião pessoal que acaba aparecendo, no mais das vezes, “apoiada” em algum autor ou teoria, mas efetivamente não há demarcação clara entre sua opinião pessoal e de um autor ou teoria.

A psicologia mais parece uma atividade mascarada de distanciamento terapêutico onde o que surge nas conversas e diálogos entre o terapeuta e o paciente é sua opinião pessoal através de seus valores e visão de mundo subjetivos. E não são poucas pessoas que se sentem incômodas e perturbadas com as declarações desses terapeutas. Não porque falaram verdades ocultas sobre seu ser, mas porque questionaram abertamente – às vezes ambiguamente, como foi este caso aqui – os valores pessoais do paciente. E de onde vem esse questionamento? De sua visão particular sobre valores.

Essa influência que nós terapeutas temos nas pessoas que fazem terapia com a gente está além da verdade sobre a capacidade que temos de fazer “leituras” abrangentes sobre suas vidas, seus pensamentos, emoções e práticas de vida. Mas assim a sociedade coloca nossa profissão. O especialista é hoje o “formador” de opinião, e só existe isso porque as pessoas querem que outros formem sua opinião. Neste jogo dialógico, o terapeuta deveria falar menos, investigar mais, ser menos presunçoso e muito mais como um arqueólogo que investiga cada minúcia daquele novo mundo antes de meter a mão desavisadamente naquilo que não conhece.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura

Filósofo. Graduado, Mestre e Doutor em Filosofia. Filósofo Clínico. Escritor e Palestrante. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Málaga/Espanha

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