A medicina no Brasil ainda é muito mais curativa do que preventiva. Pacientes costumam procurar o médico quando estão doentes e não quando estão saudáveis visando prevenir alguma moléstia. A saúde para alguns, é considerada um valor, mas para a grande maioria, só é lembrada no momento em que foi perdida.
Partindo desta premissa,
pode-se sugerir que as pessoas procuram os médicos não por desejo e sim por
necessidade. A necessidade da cura é o que leva um paciente a procurar ajuda na
medicina curativa, classificando assim, teoricamente, a medicina em uma
categoria de serviços não desejados e sim, necessários.
Quem se submete a uma
cirurgia, o faz por necessidade e não por um simples desejo. Poderíamos citar
como exceção, cirurgias estéticas, porém mesmo nestas situações, o paciente
submete-se à cirurgia por sentir que este procedimento é necessário para seu
embelezamento, pois pode estar se sentindo “feio”, e quem sabe, em sua visão de
mundo, até mesmo doente.
A partir da necessidade e
da indicação de uma cirurgia, pacientes são encaminhados para uma consulta
pré-anestésica alguns dias antes da cirurgia, visando avaliar o paciente,
planejar a técnica anestésica e fornecer explicações e instruções pertinentes.
Em alguns casos, esta consulta prévia não pode ser realizada, acontecendo o
contato entre paciente e anestesiologista momentos antes da cirurgia.
Tendo concluído a pós
graduação em Filosofia Clinica, passei a fazer uso do aprendizado em minha
prática anestésica, e gostaria de compartilhar esta experiência, e, quem sabe,
de alguma forma, contribuir para uma melhoria na percepção dos
anestesiologistas, a respeito da visão de mundo do paciente no contexto de uma
cirurgia iminente.
Anestesiologistas são
médicos especialistas, trabalhando em ambientes de alta precisão tecnológica,
onde pequenas falhas podem ser fatais, e por isto, precisam estar atentos aos
mínimos detalhes e em estado de vigilância constante do paciente. A preocupação
com as alterações emocionais decorrentes de todo o processo operatório, bem
como o treinamento para lidar com estas situações, não são enfatizadas, ou pelo
menos, são colocadas em um plano secundário durante os três anos de formação na
especialidade.
Desta maneira, no momento
da consulta pré-anestésica, vai acontecer uma interação entre um paciente
teoricamente ansioso, fragilizado que tem como Assunto Imediato a realização de
uma cirurgia não desejada, com um médico anestesiologista focado para o lado
técnico anestésico-clinico, e, provavelmente, com deficiências para tratar dos
aspectos psicológicos contextualizados nesta situação.
O que esperar desta
consulta?
O desafio emoldurado é
uma consulta de quarenta e cinco minutos onde além da avaliação médica
propriamente dita, seja desenvolvida uma interação positiva entre anestesiologista
e paciente, sejam visualizados os conflitos existenciais relativos ao contexto
cirúrgico e, se possível, a utilização de submodos (procedimentos clínicos
utilizados em filosofia clinica) adequados para auxilia-lo em caso de
necessidade.
Durante a anestesia
propriamente dita, o paciente estará inconsciente ou provavelmente sedado. A
consulta pré-anestésica, momento em que o paciente encontra-se desperto, é a
oportunidade de se demonstrar respeito, atenção, empatia com o sofrimento
alheio e disponibilidade para auxiliar num momento de vulnerabilidade e
dependência.
Algum gracejo por parte
do paciente ou familiares não é um fato raro. “Este é o perigoso”, “Não tenho
medo da cirurgia, tenho medo da anestesia”, “Não vai me deixar paralítico”,
etc. O que fazer numa situação destas? Sair dando explicações? Em filosofia
clinica, recomenda-se não fazer agendamento algum antes de se conhecer o
paciente e a família. Assim, a conduta adequada seria a de simplesmente escutar
o gracejo e deixar para respondê-lo mais adiante, se for o caso.
Após a apresentação
usual, parte-se para a colheita da anamnese. De preferência com o próprio
paciente, e o bom senso vai indicar se é necessária a solicitação da retirada
de familiares e amigos do local. O paciente deve sentir-se confortável e à
vontade para falar.
Pensei muito em como
iniciar uma anamnese, de modo que pudesse deixar o paciente livre para
expressar suas angústias e não simplesmente dirigir a entrevista para a área
clinico-anestésica. A pergunta que me pareceu mais apropriada para iniciar o
diálogo foi: “Qual é o seu problema?”
Tinha um pré-juizo
formado de que a resposta óbvia seria a necessidade da realização de uma
cirurgia não desejada. Para minha surpresa, este não foi o “problema” relatado
pela grande maioria. Situações tais como: não tenho com quem deixar meu
gatinho, não posso deixar a loja por muito tempo, não quero entrar sem roupa na
sala de cirurgia, precisaria falar com meu filho que está viajando antes da
cirurgia, não quero tirar minha prótese dentária, etc. predominaram como
resposta.
Os medos clássicos
conhecidos pelos anestesiologistas tais como acordar durante o procedimento,
sentir dor, náuseas, etc. também foram relatados, porém, o problema, ou a
angústia dos pacientes eram as situações do dia a dia que foram interrompidas e
não a cirurgia per si.
Em algumas situações,
após a pergunta inicial, o paciente iniciava uma crise de choro. O que fazer?
Deixar chorar. É uma forma de esteticidade bruta, que tem uma duração limitada
e por vezes se faz necessária. Atenção é o que o paciente está solicitando, e o
médico deve empenhar-se no sentido de fazer o paciente perceber que seu
trabalho naquele momento é escutá-lo e auxiliá-lo. A prudência recomenda
aguardar que cesse a crise, quando o paciente deve recomeçar a falar.
Uma segunda pergunta pode
ser necessária nesta situação: “Em que posso lhe ajudar?”, seguida de uma breve
explicação da função do anestesiologista. “Vou acompanhar seu procedimento
cirúrgico e ficar ao seu lado durante todo o tempo da anestesia (importante
frisar isto), providenciar para que não sinta dor no período pós operatório e
que possamos passar por esta situação da melhor maneira possível e obter os
melhores resultados possíveis.” Notem a semelhança de propósitos deste discurso
com o que propõe um filósofo clinico, um psicólogo ou um psiquiatra a seus
pacientes em consultório.
Antes de estudar
filosofia clinica, ainda complementava este discurso com a seguinte frase: “e
que o sr (a) possa voltar para casa o mais breve possível e retomar suas
atividades. Quem pode saber se é isto que o paciente deseja? Esta simples
frase, colocada sem conhecer a história do paciente, pode colocar em risco todo
um relacionamento médico-paciente.
Uma boa maneira de
iniciar a colheita da história clinica é perguntando a respeito de cirurgias e
anestesias prévias. O ideal seria deixar o paciente relatar sua experiência em
cada um dos procedimentos realizados. Assim, sem grandes interferências, o
paciente vai mostrando dados de sua personalidade. Observa-se a estruturação de
raciocínio, as emoções, a postura, o linguajar, etc.
Alguns pacientes são
muito questionadores (argumentação derivada em filosofia clinica), alguns pesam
os prós e contras da cirurgia (esquema resolutivo em FC), alguns já pesquisaram
tudo na internet (buscas em FC), alguns querem a descrição exata do que vai
acontecer (roteirizar em FC), alguns sugerem condutas ao médico (atalhos em
FC), alguns colocam tudo nas mãos do médico e não querem saber detalhes (em
direção ao desfecho em FC), alguns tem ideias pré-concebidas a respeito da
anestesia (pré-juizos em FC), etc.
As rotulações mencionadas
são meramente didáticas e muito superficiais, mas servem para dar uma ideia de
como pode ser colhida a Estrutura de Pensamento de um paciente através de uma
anamnese em que não se direcione nem se apresse a conversa. E a partir do
reconhecimento, mesmo que superficial, de como funciona a personalidade do
paciente, pode-se tentar auxiliá-lo com alguns procedimentos específicos.
Cabe ressaltar dois
pontos importantes: a) um agendamento ou uma intervenção mal realizada pode ser
tão fatal emocionalmente ao paciente quanto um descuido técnico anestésico; b)
teoricamente, e na prática nem sempre, o tempo médio de uma consulta é de 45
minutos, praticamente inviabilizando o desafio de uma abordagem emocional mais
profunda, mesmo que o anestesiologista possua treinamento para realizá-la.
Mas vamos adiante, e quem
sabe consigamos alguma luz até o final da explanação.
Dependendo da situação,
pode-se lançar mão de um procedimento clinico chamado “Reconstrução”. A partir
de um único dado colhido na anamnese, procura-se descobrir dados adjacentes da
história do paciente que ajudem a reconstruir a história de uma outra maneira.
É preciso que o paciente seja suscetível a este tipo de reconstrução. Exemplificando:
o paciente relata que na última anestesia teve uma sensação muito ruim, pois
vomitou demais no pós-operatório.
A reconstrução se
basearia na consulta de dados adjacentes ao procedimento anestésico, onde se
buscassem situações agradáveis a serem inseridas no contexto daquela anestesia.
A anestesia foi uma cesariana? Com quantos Kg nasceu seu filho? Mamou logo que
nasceu? Como foi o primeiro banho? Sentiu muita dor? Filmaram o procedimento?
Seu companheiro assistiu o parto?
A preocupação do médico
seria inserir elementos positivos naquela anestesia, reconstruindo de uma
maneira agradável aquela experiência. O cuidado extremo na realização deste
procedimento é que uma inserção mal feita pode resultar em uma reconstrução num
sentido mais desagradável ainda.
Pacientes costumam
relatar medo da anestesia, e, pode ser tentada a técnica de fazê-los
“percepcionar” este medo. Busca-se detalhes deste medo através da montagem de
uma cena onde o mesmo possa ser palpado, percepcionado. Uma cena virtual, porém
de preferência tridimensional, com cheiros, luzes, etc. Ao nos aprofundarmos na
questão, podemos descobrir que o medo se refere à escuridão, barulhos, tamanho
da injeção, etc. De posse destes dados, pode-se então introduzir elementos que
darão mais segurança ao paciente no sentido de enfrentar os medos agora
percepcionados.
O paciente, uma vez
hospitalizado, é afastado de seu convívio familiar, social e profissional e
passa a conviver com situações novas. É neste momento que o mesmo passa a ser
dependente de um profissional que possa cuidá-lo e ao mesmo tempo ser um elo de
ligação entre as novas rotinas e o mundo do qual foi afastado.
Em breve, teremos
computadores sofisticados, precisos e eficazes, capazes de calcular doses
anestésicas de acordo com sua farmacocinética e adequando-as baseado na
monitorização minimamente invasiva dos sinais vitais. Todo este avanço
tecnológico e científico pode se tornar inócuo, pois estes mesmos aparelhos
serão impessoais e assustadores para os pacientes. Frios, surdos e mudos.
A quem caberá o papel
humanizador? Quem será o elo de ligação? O anestesiologista, à enfermagem,
psicólogos, filósofos clínicos? Quem fará a diferença neste processo?
*Dr. Ildo Meyer
Médico. Escritor. Palestrante. Filósofo
Clínico. Possui o doutoramento “Honoris Causa”, conferido pelo Conselho
da Casa da Filosofia Clínica em 2019.
Porto Alegre/RS
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