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Nós das circunstâncias*






 

 

A forte e familiar sensação de ser vida analisada (refletida, ponderada) mais que abraçar e acolher, viver a fundamentação da Filosofia Clínica, me acompanha. A questão da prática se insere nos muitos aprimoramentos das imbricações trágico-cômicas da poética do existir, onde se entrelaçam: fazer e pensar, para ser! Sentir na pele o peso, a leveza e a neutralidade dos dias... Observar o que nos diz o reflexo da nossa imagem no espelho... Escutar com todos os poros... Sustentar o olhar... 

O que vemos segue a passagem meramente cronológica do tempo – onde segundos convertem-se em minutos, horas, dias, semanas, meses, anos – ou engloba também o tempo sentido, que nos coloca como resultado e resultante dos significados que estabelecemos nessa trajetória? Qual nosso nível de intimidade ao nos relacionarmos com a vida: história, natureza, conosco e os demais (incluindo as organizações que integramos)? 

Protágoras e Schopenhauer ditam para a Filosofia Clínica que a medida das coisas é a relação entre Filósofo Clínico e Partilhante, também decorrente das interseções que ambos travam fora e dentro. E aí vem o canto de Georg (o Cantor), classificando a qualidade das relações em positiva, negativa, confusa e indefinida. Gradações de bem e mal-estar que nos acompanham na singular conjugação do Nós e ao atar ou desatar os nós decorrentes do plural que também somos. 

Será que existiria um logicismo capaz de universalizar raciocínios ditos corretos pelo domínio da palavra, sem subverter o espírito humano, sedento de experiências? Seríamos meros algoritmos a orbitar a normatização estéril de programas fechados? Ou os dilataríamos, expandindo exponencialmente sua capacidade pelo potencial humano de criação e reflexão embutido no viver? 

Na trama que é o existir Escolas dialogam e se interpenetram, ora em encontros de correntes de pensamento, ora em choques capazes de promover rupturas, avanços e novos recomeços. Leibniz, Russell, Wittgenstein não chegam até Maturana, sem antes parar para prosear com Karl Popper e Gadamer. E a coisa começa a ficar ainda mais divertida: o limite do conhecimento é apontado. Vivas à ciclicidade histórica, Sócrates e Platão outra vez fazendo girar roda. O primeiro com “só sei que nada sei”, o segundo com “o que é mesmo, não o é de forma total e verdadeira”. Ambos brindando Pitágoras, taxativo ao inserir a busca como condicionante da filosofia, nem de longe inaugurada e/ou restrita a Grécia Clássica. 

E o que isso tem a ver com a vida e a Clínica? Muita coisa. Como seres singulares e plurais que somos, mesmo os mais iguais são profundamente diferentes e se relacionam entre si em graus distintos de intensidade e conflitos, termos que muito raramente são lidos a partir da mesma tradução (significado). Assim, mais do que nunca convém vestirmos a camisa de buscadores, que nos converte em filósofos do cotidiano a capacitar o terapeuta. Expressões como “não sei” e “precisamos averiguar” deveriam nos ser caras e poderiam se fazer mais presentes. Ao contatar o outro ou sermos por ele contatado, sabemos muito pouco de início. Se não tivermos os cuidados e critérios necessários, com o passar do tempo, saberemos menos ainda. 

Não é demais lembrar que a Pessoa é anterior a Estrutura de Pensamento (EP), seu modo de se apresentar existencialmente no ambiente. Se a EP é plástica, procuremos ser íntimos das questões fundamentais e não engessar trajetórias... Nem as nossas, nem as dos outros, nem as da Filosofia Clínica! 

Atenção redobrada diante da arrogante pretensão de alcançar a verdade do outro. Quanto muito, alcançamos a nossa verdade... A parcialidade e a incompletude de certo modo nos favorecem, nos mantém abertos a novas possibilidades e experimentações... 

Nessa caminhada seguimos desatando nós para melhor discernir quem somos e o que nos cabe diante das circunstâncias que nos chegam. Ainda que o circunstancial possa ser rigoroso, inserido na vida mantém preservada a maleabilidade própria do existir em relação, que é um contínuo transformar-se. 

Que o humor e a leveza nos acompanhem, sobretudo quando nos percebermos engalfinhados com nossos pensares e pesares, golpeando pontas de facas alucinadamente, desconectados do ritmo pulsante da vida, sem perceber nem o pássaro que gorjeia, nem o sangue que jorra, nem o sol que incendeia, nem o vento que sopra, nem a lua e as estrelas que o breu clareia... 

Não precisamos ser tão carrancudos, nem nos comportar como carrascos da gente mesmo e uns dos outros. Parece atitude desprovida de inteligência reiteradamente transportar pesados fardos queixando-se das tensionadas dores que inviabilizam o prazer de fluir pela existência. Mesmo entre guerras, soa como grave insensatez não saber detectar, celebrar e usufruir da paz... Fiquemos bem! 

*Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial. Co-fundadora do Instituto ORIOR. Formação em Ciências Jurídicas e Sociais, Filosofia Prática e Filosofia Clínica (IMFIC / Instituto Packter – ANFIC / Casa da Filosofia Clínica). Trinta anos dedicados a pesquisas, aplicação e difusão de ciências humanas e afins. Atua na área de Desenvolvimento Humano e Transformação Cultural, fortalecendo partilhas e redes transdisciplinares de aprendizado. www.orior.com.br/ana-rita

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