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Aparências enganam*

Aparências enganam. Palavras também. Parecia um casal em perfeita harmonia, conversavam bastante, discutiam a relação, mas por baixo dos lençóis as coisas não estavam bem. 

Aos poucos o “eu te amo” foi sendo trocado pelo “se cuida”, o beijo apaixonado foi reduzido a um selinho, o abraço apertado virou um tchau com cara de adeus. Decidiram então que já não se amavam, os corações não mais se encaixavam e não precisariam ficar a espera de um final penoso e litigante. O melhor que tinham a fazer era a separação. 

Decidiram também que o melhor para eles seria não se encontrarem dali para frente. Trocaram olhares profundos, palavras de desfecho,  fizeram as divisões necessárias  e nunca mais se viram. 

Os bens materiais foram repartidos como se estivessem jogando cartas, metade para cada um quase que aleatoriamente, sem desentendimentos.  A desarmonia surgiu na sutileza do imaterial e impalpável. 

Visto que não queriam mais se encontrar, precisavam repartir também a cidade. Um frequentaria o shopping A, o outro o shopping B, ele caminharia num parque, ela no outro e assim por diante. Dividiram inclusive os bares e restaurantes. Não foi fácil, alguns botecos eram maravilhosos, traziam ótimas recordações e ambos queriam continuar desfrutando. A solução para esse impasse foi salomônica. 

Segundas, quartas e sextas os bares e restaurantes compartilhados estariam reservados para ele, os demais dias seriam destinados para ela. Esta distribuição semanal serviria inclusive para futuras casas noturnas, lojas e praças que fossem inauguradas. 

A partilha foi se tornando cada vez mais difícil. Agora era a vez de negociar amigos.  Originalmente o casal foi trazido ao convívio por ele, mas com o tempo as esposas ficaram muito amigas, até mesmo mais ligadas que os maridos. Não havia sentido as companheiras confidentes se afastarem, no entanto não houve entendimento. A combinação era o distanciamento total de lugares e contatos. Mais uma vez, trocaram e jogaram fora amigos como num jogo de canastra. 

Curioso saber que apesar de todas as cláusulas registradas em duas vias, o casal esqueceu de combinar multa no caso de  transgressão por uma das partes. O fato é que os dois cumpriram à risca o contrato. Contato zero. 

O problema do fim é quando ele nunca acaba. Depois de alguns meses ela recebe uma mensagem inusitada. Era justo ele, o ex longínquo, perguntando se poderia frequentar o shopping dela determinado dia e horário em caráter excepcional. Perplexa, assustada e confusa, respondeu hesitante com um monossilábico sim. Desligaram os celulares sem mais palavras. 

O amor mostra sintomas e hematomas. Naquele exato dia e horário ela não resistiu. Alguma coisa estava lhe chamando. Vestiu sua melhor roupa, arrumou os cabelos do jeito que ele gostava e foi passear no shopping. Sabia que ele estaria por lá, talvez estivesse acompanhado, quem sabe se encontrariam, e mesmo assim, apesar de todos os riscos, necessitava estar lá também. Era vital para ela. 

Coisas podem ser divididas. Amigos podem ser afastados. Relações conjugais podem terminar. Separação física não é o fim. A gente se despede de pessoas, não de sentimentos. Aparências enganam, o intelecto também. 

*Ildo Meyer

Médico. Escritor. Filósofo Clínico. Palestrante. Mágico. Autor da obra: “Visita de Médico – Uma aproximação entre Filosofia Clínica e Medicina”. Publicada pela coleção da Editora Vozes/RJ. Dentre outras obras. Recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” concedido pelo Conselho da Casa da Filosofia Clínica em 2019.

Porto Alegre/RS

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