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Anotações e reflexões de um Filósofo Clínico*

Ontem pediram-me que indicasse livros para ajudar professores a ensinar melhor. 

Não pude fazer essa indicação. Na verdade, sugeri o caminho contrário: em vez de um livro para que se ensine bem, propus que se vá a cada aluno.

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O segredo do ensino não está num livro: está na própria relação entre o professor e o estudante.

Cada estudante é diferente: tem uma história de vida única, dispõe de seus afetos de modo particular, aprende da sua própria maneira.

Por isso, cada relação professor-estudante é singular. O bom professor é aquele que utiliza a sua sensibilidade, a sua experiência e o seu conhecimento para estabelecer uma aliança de confiança com cada aluno - para que cada um deles mostre-lhe o que melhor funciona consigo.

Isto é: antes de ensinar a matéria, o bom professor investe seu tempo e sua atenção para aprender como funciona o processo cognitivo de cada criança sob seus cuidados.

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Cada pessoa aprende de sua própria maneira; a técnica didática que funciona bem com um estudante pode provocar o bloqueio no outro.

Por isso, a prática corrente de despejar a matéria a todos os estudantes do mesmo modo, como se o processo privilegiado pelo professor fosse o único - ou o melhor - possível, é uma violência: privilegia uns em detrimento de outros, sob o argumento da igualdade de acesso ao conteúdo.

Ora, a imposição da igualdade a pessoas desiguais nada mais é que a imposição da desigualdade.

É esta a razão pela qual livros que propõem métodos gerais de ensino são, na verdade, anti-educacionais: ao uniformizarem a técnica didática, concorrem para a marginalização acadêmica de todos aqueles que aprendem melhor de outras maneiras.

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"Ah professor Bertoche, mas é possível pôr isso em prática com uma turma de trinta ou quarenta alunos?"

Não, amigos, não é possível. Não há como conhecer bem trinta ou quarenta crianças em uma sala de aula, e não há tempo para ensinar a matéria a cada um de acordo com o seu processo cognitivo singular. Turmas de trinta ou quarenta alunos são sempre - sempre! - depósitos de crianças, tanto na escola pública quanto na escola privada; são um crime contra a infância, contra a Educação, contra a nossa civilização, e deveriam ser terminantemente proibidas em nosso país.

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Machado de Assis desnuda e ridiculariza o brasileiro - o do século XIX, o do século XX, o do século XXI.

O conto "Teoria do Medalhão", por exemplo, vale por um tratado de psicologia nacional: no Brasil quase todos - assalariados, comerciantes, profissionais liberais, políticos, magistrados, professores, perfilados à esquerda e à direita - seguimos à risca as lições do pai de Janjão.

Isto é: em lugar da coragem para conhecer cultivamos a covardia diante do pensamento livre. Em lugar das dificuldades da análise crítica preferimos a facilidade dos slogans e das frases feitas. Em lugar da perigosa independência intelectual escolhemos a prudente repetição das idéias correntes entre os nossos pares.

É nessa atmosfera que tornamo-nos quem somos: o povo da figura bela, mas vazia; o povo de aspirantes a medalhões.

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Escreveu Cioran: "Tudo é aparência. Mas aparência de quê? Aparência do nada".

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*Prof. Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Escritor. Musicista. Mestre e Doutor em Filosofia. Professor na Universidade da Beira em Portugal. Filosofo Clínico. Em 2019 o Conselho da Casa da Filosofia Clínica lhe concedeu o título de “Doutor Honoris Causa”. Livre Pensador. 

Rio de Janeiro/RJ

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