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Diagnósticos: qual o problema com eles ?*

Diagnósticos são uma forma de conhecimento que pretende considerar a realidade ou um grupo de particulares da realidade como comuns, uniformes, comensuráveis. Tenta, com isso, desconsiderar ou minimizar a mutabilidade, a indeterminação de um grupo de particulares.

Em termos de filosofia, seria o conceito universal. Neste sentido, é uma ideia ou noção que pode ser partilhada por vários particulares. Portanto, o universal está separado da coisa particular, é, portanto, seu padrão ou critério de avaliação de correção ou de valor ou de “normalidade”, e, ao mesmo, tempo “participa” de cada particular dando a este sua essência ou natureza. Está fora de cada particular, mas define ele.

Na medicina um diagnóstico dá ao particular, um coração, por exemplo, uma noção do que é a doença e qual os procedimentos que devem ser realizados para curar este órgão. Em termos de qualquer atividade corporal ou práticas corporais “corretivas”, o diagnóstico serve como uma aproximação do caso particular, colocando-o dentro de um grupo de conhecimento e, a partir disso, de práticas mais apropriadas a este diagnóstico.

Mas e no comportamento humano? Qual a validade de um diagnóstico ou conceito universal? Ora, há comportamentos humanos que são parecidos em todos os lugares independente da cultura ou do tempo histórico. Quase todos os seres humanos sentem medo ou reagem a ele de modo parecido. Assim o fazem com outros sentimentos como reações à solidão, ao tédio, à alegria etc. Poderíamos, frente a esses comportamentos comuns, estabelecer um parâmetro maior ou menor e colocar as pessoas neste horizonte. Aqueles que reagem ao medo fugindo, aqueles que reagem ao medo enfrentando etc. Para cada grupo de pessoas em determinado conceito universal teriam alguns procedimentos “terapêuticos” parecidos.

Mas de onde vieram esses procedimentos? Da observação e aceitação de várias práticas que já funcionaram em determinados casos particulares. Então, colocado em prática esses procedimentos, dentro de um grupo diagnóstico ou universal, a chance de eles funcionarem para maioria das pessoas é grande. Mas não funcionará sempre bem assim com todos. Por quê? Porque não há como um conceito universal ou um diagnóstico dar conta de tamanha complexidade das questões particulares e dos elementos que estão emaranhados em cada caso. Então, o que fazer?

Para esses casos em que o conceito universal ou diagnóstico não funcionou, tem que se conhecer as características idiossincráticas de cada caso. É exatamente aí que entra a filosofia clínica. A pergunta que faço é a seguinte: por que não ver caso-a-caso sempre? E, ao invés de partir do universal, partir não do particular, mas do singular, do cada-um-por-si-mesmo?

O fato de que independente de muitas ou quase a totalidade das pessoas reagirem parecidas em seus comportamentos em situações parecidas, independente da cultura ou o do tempo histórico, apenas nos mostra que fazemos parte da natureza humana comum a todos nós. Também fazemos parte da natureza cultural da qual nos inserimos e culturas diferentes reagem a situações iguais de formas diferentes em função de seus valores, juízos, normas sociais etc. Além desses dois níveis anteriores – natureza humana e natureza social ou cultural – ainda temos outros, como a cidade, bairro, a família, os amigos, as interpretações de cada experiência, a linguagem etc.

É exatamente aí que chega a filosofia clínica e não chega nenhuma outra terapia. Por quê? Porque diagnósticos e conceitos universais são a primeira ou segunda camada daquilo que nos constitui enquanto ser no mundo. Parar aí, considerar comportamentos parecidos ou “perfis” como a “natureza” ou “essência” de nosso ser no mundo é reduzir muito os níveis de complexidade no qual vivemos e experienciamos a vida.

E definir diagnósticos ou conceitos universais com o nome de “doença”, “transtornos”, “disfunções” não transforma os conceitos universais e diagnósticos em verdades de cada singular, porque esses conceitos continuam na periferia e à margem do ser no mundo.

Os diagnósticos e conceitos universais são úteis em terapias corporais ou que envolvem terapêuticas corporais ou para questões judiciárias e sociais. Alguém fazer parte do grupo de LGBTQ+ não o torna comensuravelmente igual a uma dessas designações. Sua identidade de ser no mundo não está reduzida a um conceito qualquer desses. Existencialmente cada um é muito maior do que os conceitos que usam socialmente para defini-los. No entanto, socialmente, juridicamente, culturalmente é importante defender esses conceitos universais ou particulares contra os preconceitos, a exclusão, a desonra e indignidade humana.

Os diagnósticos como realidade última da essência ou natureza existencial de um singular, é um erro epistemológico, um abuso de setores de poder social – como a psiquiatria e as psicologias de “perfis” – e um desserviço às terapias como a filosofia clínica, que partem sempre do singular em direção ao próprio singular. Não há necessidade alguma de existir, para a terapia da filosofia clínica, qualquer diagnóstico do comportamento ou de “saúde mental”. Tudo o que é idiossincrático em cada singular a filosofia clínica tem a capacidade de apreender, conhecer e interagir sem o uso de conceitos universais ou diagnósticos.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Filosofo Clínico. Escritor. Professor titular de Filosofia Clínica. Em 2019, por decisão do Conselho Deliberativo e Direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

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