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Filosofia e autonomia*


A filosofia deve conduzir à autonomia de quem a estuda. Adquirir cultura filosófica sem filosofar, equivale a decorar o nome e o formato de todas as peças do motor de um automóvel sem ser capaz de montá-lo. O valor de ler um pensador como Aristóteles não está em apenas compreender ou, pior, decorar como ele percebeu a realidade, mas em nos ajudar a enxergá-la. A autonomia acontece justamente no momento em que a partir da compreensão da realidade através dos “olhos” aristotélicos, enxerguemos essa mesma realidade por nós mesmos, tornando-nos capazes de descrevê-la levando em conta a nova experiência adquirida. Esta sempre será única, tal como as distintas perspectivas filosóficas.

Portanto, quando lemos um livro ou assistimos a alguma aula, o conteúdo todo deve ser compreendido. Mas, o que deve ser assimilado, guardado, questionado, remoído e aprofundado é somente o que interessa de fato. Você não é convidado a ser uma cópia de Aristóteles quando o estuda. Ele buscou compreender o que era seu foco e nos chegaram parte de suas conclusões. Por que Aristóteles não ficou completamente vinculado ao pensamento de Platão, de quem foi aluno durante vinte anos? Porque ninguém que construa um pensamento a partir de si, de sua realidade, fará igual a outro que investigou sob o mesmo critério. É por isso que Aristóteles não se contentou em repetir o que aprendeu de Platão, e o mesmo aconteceu com Gadamer em relação a Heidegger.

Penso, inclusive, que ao invés dos professores de cursos universitários se contentarem em avaliar as exatas explicações do professor – repetidas como papagaio nas provas (o que de certa maneira é necessário em conteúdos do ensino fundamental e médio) – deveria levar um pouco mais em conta o que o aluno construiu a partir do que aprendeu. O que o professor ensinou deveria servir de mote para que o aluno se dirija à biblioteca e à internet para buscar aprofundar em aspectos que considerou interessante. Mas reconheço que a burocracia nem sempre permite esse tipo de iniciativa.

Voltando ao assunto, é necessário ter um critério consistente como apoio para o ato de filosofar: a realidade. Quando se toma a realidade – no sentido lato – como parâmetro e meta de conhecimento, toda filosofia, literatura, teologia, ciência, arte, história e psicologia passarão pelo crivo constante da realidade para afirmar ou negar sua validade. Somente assim será possível ler Platão, Aristóteles, Agostinho, Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger e tantos outros para além, por exemplo, dos estreitos limites da análise de proposições.

Embora tenha feito um paralelo do conhecimento filosófico com a montagem de um motor, na prática não há semelhança entre ambas. Diante disso alguém diria: qual é a utilidade da filosofia? Nesse sentido, filosofia não serve para nada. De fato, se por “servir” se compreende a manipulação da natureza em vista de viabilizar condições materiais de vida mais favoráveis ou confortáveis, para isso filosofia não tem grande “utilidade”. Porém, se a finalidade é aumentar a compreensão da própria natureza, do mundo e do bem para o qual a existência só adquire sentido em busca de realizá-la, então a filosofia é a ciência mais útil de todas.

*Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo
Filósofo. Escritor. Filósofo Clínico
Teresópolis/RJ

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