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Reflexões de um Filósofo Clínico*

O privilégio de um espaço terapêutico

O espaço terapêutico pode ser um âmbito privilegiado de construções compartilhadas. Nele, filósofo clínico e partilhante ensaiam hipóteses de outras vias. Onde antes parecia haver uma bifurcação, um dilema entre duas vias igualmente ruins, podem surgir outras direções antes impensadas. Na história de vida relatada pelo partilhante, podem emergir indícios de caminhos abertos, mas não trilhados. Vendo isso, o filósofo tem a possibilidade de construir a clínica por essas vias. A singularidade dos casos não nos permite dizer quais são essas vias e para onde elas levarão a pessoa. Mas, há chances consistentes de lograr êxito quando tais caminhos estão de acordo com as direções para as quais a pessoa se dirige existencialmente.

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Já atendi casos assim?

Nós, terapeutas, corremos o risco de acumular atendimentos com casos parecidos e, com isso, construirmos uma noção de que saberemos como compreender e o que fazer ao surgirem novos casos com as mesmas características. Mas, a aparente semelhança não deve pautar nossos procedimentos futuros. Talvez isso funcione em planejamentos sanitaristas, em projetos urbanísticos, em investigações sociológicas etc. Porém, quando se trata da terapia, os elementos em comum não devem sobrepor as especificidades, as singularidades. David Hume nos ensina que nossa noção de causa e efeito, isto é, nossa compreensão de padrões nada mais são do que hábitos. Todavia, se o hábito do terapeuta obnubila sua abertura ao novo do outro, a terapia corre o risco de se tornar um enquadramento. Assim, o terapeuta perde seu espanto e admiração ante o novo; no caso da minha área, deixamos de ser filósofos, ou melhor, filósofos clínicos.

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A filosofia clínica é uma das respostas?

Desde os anos de 1980 (alguns estudos apontam movimentos em décadas anteriores), estudiosos ao redor do mundo começaram a pensar a aplicação da filosofia em atendimentos de consultório. A filosofia clínica é uma dessas propostas. Além disso, ela é genuinamente brasileira, com fundamento e método próprio. Assim como alguns outros sistematizadores de terapias, Lúcio Packter veio da medicina; mas, como estudioso das psicologias, da neurologia, da psiquiatria e, sobretudo, da filosofia, foi além das compreensões fisiológicas do ser humano. Os estudos realizados por Packter o levaram a constituir o método da clínica filosófica. Trata-se de um método que nos leva a considerar a singularidade em suas consequências mais radicais: cada pessoa é única, assim como seu contexto, sua história, sua estrutura e seu modo de viver.

*Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo 

Filósofo. Filósofo Clínico. Escritor. Prof. Titular em Porto Alegre/RS e Chapecó/SC. Teresópolis/RJ. Além do mestrado e doutoramento acadêmico, possui o doutoramento “Honoris Causa”, conferido pelo Conselho da Casa da Filosofia Clínica em 2019.

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