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Uma epistemologia dos subúrbios*

“A vida não é senão uma procissão de sombras e sabe Deus por que as abraçamos tão avidamente e as vemos partir com tal angústia, já que não passam de sombras”

                                                                    Virgínia Woolf 

A natureza também insinua seus originais na impermanência de um talvez. Instantes em que a conexão propõe a novidade discursiva ao sem rosto das aparências. Assim, para além da mentira civilizada, outras verdades ensaiam inéditas versões.

Nem sempre em busca de tradução, essa característica existencial realça pontos de interseção com universos absurdos. Seu sentido inédito, antes de ser provável, descreve-se na escassez poderosa de um quase. Seu dizer marginal aparece como vontade de transgressão.

Com sua pronúncia irreconhecível a escuta muda, e o momento fugaz dos achados carece a surgir distorcido. Ao ter o anonimato preservado, se distancia das ingerências de ser igual. Sua indeterminação sugere um vocabulário por chegar.

Na crítica de Harold Bloom: “Para que uma leitura (desleitura) seja ela mesma produtora de outros textos, é obrigatório que afirme sua singularidade, sua totalidade, sua verdade” (Um mapa da desleitura, 2003).

Para decifrar os indicativos dessa fonte de desassossego, a reciprocidade é fundamento. O desafogo do discurso incompleto ou a desestruturação de raciocínio, tão íntimos da verdade desamparada, pode transbordar noutros dialetos em direção à vida.

Novos idiomas se multiplicam nos subúrbios da linguagem conhecida. Sua via fronteiriça aparece sem sentido à ótica precursora. O espírito iconoclasta reinventa o mundo a partir de seus excessos.

Texturas de não ser herói ou vilão fazem referência ao hóspede recém-chegado. Na pluralidade das maquiagens é possível entrever a errância descobridora a se indeterminar nos rascunhos.

Albert Camus, para além dos muros absurdos. “Como as grandes obras, os sentimentos profundos significam sempre mais do que têm consciência de dizer” (O mito de Sísifo, 2005).

A existência da margem aprecia se mostrar na mendicância das estéticas da desilusão. Num mundo onde o aniquilamento e a injustiça se fundamentam na razão, estar-junto e compartilhar se torna impensável. No entanto, as inesperadas confidências atribuem outras possibilidades ao que se declarava satisfeito.

Quando as máscaras rivalizam na pessoa, é comum, durante algum tempo, um embate entre a expressividade e suas vontades. Interseção por onde o contraste animador ressignifica as desavenças. Sem ter isso muito claro, a pessoa se objetiva em um ou outro jeito de ser. Nesses casos, a mentira, o logro ou a ambiguidade assumem o papel principal, deixando rastros de adesão ao disfarce atual.

É comum a escolha recair nalgum papel existencial já determinante, embora invisível ao próprio olhar. Momento em que os opostos apreciam se integrar numa só feição. O drama se reapresenta pela carência de um ponto de equilíbrio, onde o agora consiga se legitimar na sequência provisória dos eventos.

Bronislaw Malinowski ensina: “Se um homem parte numa expedição, decidido a provar certas hipóteses, e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil” (Argonautas do pacífico ocidental, 1976).

A ficção engendra o escândalo de um ser híbrido, quase sempre contido pela mordaça da norma. No entanto, mesmo quando restam miragens, surge uma sensação de violação, por essas afinidades insuspeitas.

Nesses ímpetos sem tradução os fragmentos possuem vida própria, um lugar onde as ruínas de si mesmo se transformam em alicerce. A versão clandestina se desdobra e ressurge na maquiagem ideologizada pelos convívios. Ainda assim, a pluralidade dos pontos de fuga acena novos existires.  

Com a rasura das certezas aparece um lugar profano, onde o sujeito alienado transforma sua noção perdida em poesia. Recém-chegado de uma terra estranha, possui a estrutura dos milagres. Saber itinerante a multiplicar pressentimentos de amor e liberdade. Ao cogitar sobre a intencionalidade das ventanias, o caráter nômade se vê face a face com o sem rosto das multidões.

Ao irreconhecível da língua, as reticências espalham outras suspeitas. Uma instável travessia pelo absurdo cotidiano, revela um espetáculo a se desdobrar na epistemologia dos subúrbios.

*Hélio Strassburger in “Pérolas Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável. Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.

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