Pular para o conteúdo principal

Anotações e reflexões de um Filósofo Clínico*

Amanhã, após meses de espera, chega à nossa casa a biblioteca.

Foi uma imensa burocracia: dezenas de caixas, milhares de livros, aguardando a autorização para o embarque num contêiner - e depois a longuíssima espera na alfândega no porto de Lisboa.

A espera na chegada foi especialmente longa: as caixas com os milhares de livros foram selecionadas pelos agentes da alfândega para uma inspeção detalhada. Afinal, quem, em 2022, gasta (não pouco) dinheiro para carregar uma biblioteca para outro país? Imagino a decepção (ou a felicidade) dos agentes ao descobrirem que não, ali não havia nem traço de contrabando: era somente a mudança de um professor de filosofia.

* * *

Alguns amigos me criticaram: eu deveria passar a carregar a minha biblioteca num pendrive. Sim, eu entendo: é muito mais barato e prático ter livros digitais. Eles não custam caro, podem ser levados a qualquer lugar sem esforço, não demandam vários cômodos para a sua organização.

Todavia, a minha relação com os livros não é meramente instrumental: é afetiva. Leio livros, escrevo livros, porque amo esses objetos já cinco vezes centenários. Um livro de papel contém tudo o que há num livro digital, mas possui algo mais: a capacidade de proporcionar uma experiência viva - a experiência da proximidade material com o pensamento de um mestre.

Sim, amigos: sou da turma dos que gostam de, por meio de pedaços de fibra vegetal, conversar com gente morta.

_______________

Inaugurada por Descartes, a Modernidade visa a pensar exclusivamente a partir de suas próprias circunstâncias - e faz questão de desconhecer todo o pensamento clássico e medieval.

Hoje, no paroxismo da Modernidade, os intelectuais acreditam lidar com problemas absolutamente novos, jamais pensados ateriormente - problemas como, por exemplo, a questão da "inteligência artificial", o caráter autofágico da democracia, a proposta do gênero neutro na língua portuguesa.

O que os intelectuais do nosso tempo ignoram - devido à sua deficiência cultural - é que esses problemas já eram discutidos, sob outras formas, há milhares de anos.

* * *

O caso específico da proposta do gênero neutro é emblemático. Os defensores da inclusão do gênero neutro nas normas gramaticais do português partem da posição filosófica convencionalista radical a respeito da linguagem, segundo a qual a língua - com a sua gramática e o seu léxico - é completamente convencional e pode ser alterada deliberadamente (por razões políticas, por exemplo). Essa posição é a mesma defendida por Hermógenes no "Crátilo" de Platão (que Ross propõe ter sido escrito em 388 a.C.). Todavia, no "Crátilo" o convencionalismo radical de Hermógenes é logo rechaçado por Sócrates: não basta simplesmente o nosso desejo para transformar a língua; a linguagem deve, de algum modo, apontar para a natureza das coisas, ainda que inevitavelmente haja algo de convencional nesse apontamento.

* * *

Trataremos desse e de outros temas suscitados pelo "Crátilo" de Platão na aula de hoje à noite do Curso de Filosofia.

Para inscrever-se, acesse: hotm.art/FU0uWJ0 .

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Educador. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico. Doutor "Honoris Causa" pela Casa da Filosofia Clínica. 

Portugal

Comentários

Visitas