O título ideal para um texto desse tipo sobre filosofia clínica, deveria ser: Abordagem do que não é possível ser abordado, guia para um texto que não deveria ser escrito. Controverso, não? Mas, nas linhas seguintes, explicitaremos o porquê que um título assim seria justificável.
Para esclarecer nossa proposta,
vamos nos remeter a Sócrates (469 a.C. – 399 a. C.) um ateniense que mudou o
foco da filosofia Ocidental. Longe de nos determos em longas linhas acerca da
história da filosofia, abordaremos apenas alguns traços desse pensador para
servir ao fio condutor de nossa reflexão.
Antes de Sócrates, havia
pensadores denominados filósofos da natureza, ou seja, suas reflexões estavam
voltadas para o todo, o cosmos, a ordem, a origem de tudo o que é. Depois
desses pensadores, surge Sócrates inaugurando o pensamento mais antropológico.
Ele não escreveu nada, tudo o que sabemos dele foi escrito por seus seguidores,
como Platão, ou por opositores, como Aristófanes.
Platão nos mostra que seu mestre
andava pelas ruas de Atenas questionando as certezas de seus interlocutores. Em
todos os diálogos, essas certezas eram desconstruídas. Mas, Sócrates não dava
respostas após tirar seu interlocutor da segurança de suas convicções, e ainda
se autodeclarava ignorante com a célebre frase “Sei que nada sei”.
Trata-se, no caso de Sócrates, de
um recurso irônico, mas para a filosofia clínica, um princípio metodológico.
Chegamos, em parte, ao porquê de nossa afirmação quanto ao título. Se
metodologicamente o filósofo clínico não sabe nada, como abordar temas da
clínica filosófica quando nada se deve saber acerca, nesse caso, do
partilhante?
Trata-se de uma questão cuja
resposta não e possível de ser dada em apenas um pequeno texto como este. Mas,
para melhor compreendê-la, podemos apontar uma primeira questão a fim de
explicitar um princípio básico da clínica filosófica. O que é necessário dizer
é que o princípio básico para o qual afirmar que nada se sabe é referido à
questão da singularidade como referencial básico dessa abordagem terapêutica.
Agora precisamos nos remeter a
outro pensador, chamado David Hume (1711-1776) que em seu ceticismo filosófico
nos ensina que aprendemos durante nossa experiência de vida a dotar a
explicação das coisas com relações causais. Por exemplo, se vimos várias vezes
que pela manhã o sol nasce, concluímos que o sol nasce todas as manhãs. Mas,
essa aferição, nos diz Hume, é apenas em nossa experiência e nada diz que de
fato acontecerá. E o que tem a ver essa, “quase absurda”, afirmação humeana com
a filosofia clínica?
Podemos tomar desse ceticismo
metodológico que não é o fato de diversas pessoas que apresentam determinados
sintomas, terem tidos causas em comum, que todas as pessoas que apresentam os
mesmos sintomas terão essa mesma causa comum. Ou seja, quando algum partilhante
aparecer no consultório com sintomas característicos ou até “idênticos” aos que
o terapeuta já acompanhou, nada indicará que as causas são as mesmas, portanto,
o modo como se lidará com esses problemas, também não o será.
Assim, como escrever alguma coisa
quando, na verdade, todos os casos clínicos serão absolutamente únicos,
irrepetíveis e redundantemente, singulares? Aí está a questão. O que a
filosofia clínica nos proporciona são “ferramentas” metodológicas a fim de que
possamos recepcionar melhor o que o partilhante nos traz.
Uma vez que o “não saber” é a
base metodológica da filosofia clínica, precisamos “saber” ser receptivos ao
que esse mesmo partilhante nos trás como sua história de vida, problemas,
questões, etc., para que caminhos possíveis, em vista do bem-estar existencial,
sejam viabilizados a partir do partilhante e sua interseção com o terapeuta,
numa construção compartilhada de sentido e entendimento.
Então, qual seria o primeiro
passo para compreender a filosofia clínica? Ouvir!
Ouvir o que ela tem a dizer para
que possamos ouvir a nós mesmos – pois o primeiro a ser beneficiado com o
conteúdo dessa abordagem, somos nós mesmos ao aprendê-la –, as pessoas com as
quais convivemos, uma vez que ao sermos afetados por esse aprendizado, o trazemos
para nossa prática de vida e, por fim, o partilhante, que abrirá as portas de
seu ser para que possamos, de alguma forma, ajudá-lo – seja qual for o
significado do conceito de ajuda que a singularidade do partilhante propicie ao
terapeuta viabilizar.
*Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo
Filósofo. Mestre e Doutor em
Filosofia. Escritor. Filósofo Clínico. Autor da obra: “Introdução à
Filosofia Clínica”, na coleção da Editora Vozes/Petrópolis/RJ. Em 2019, por
indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de
“Doutor Honoris Causa”.
Teresópolis/RJ
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