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Drogas*

 

Desde que há registros, há mais ou menos 5.000 anos antes de nossa era, que o ser humano faz uso de drogas em algum momento de sua vida. Quase toda droga nasceu de rituais religiosos ou místicos e era consumida para fins de aumento ou elevação da consciência em algum momento em algum ritual extra da vida cotidiana. Por isso, raro era o consumo “recreativo” e pessoal e, por isso, raro era o problema do vício onde as pessoas perdiam o controle do uso dessas substâncias. Elas estavam circunscritas aos rituais bem definidos, em momentos e lugares também bem definidos.

Foi só quando a droga virou “recreativa” e pessoal que o vício e os “problemas” de comportamento começaram a preocupar as outras pessoas. Dionísio e as Bacantes foram um paradigma neste sentido. O uso mais prazeroso dessas substâncias – incluída aí o álcool ou o vinho – foi uma ruptura no uso até então costumeiro delas.

A partir daí, em uma grande e inarrável contexto histórico, povos imigrantes que acabavam por criar seu povoado dentro de países ou comunidades já estabelecidos com seus valores e regras sociais-políticas, começaram a sofrer dos preconceitos contra suas práticas e linguagem. Assim com o ópio dos chineses que levaram em suas viagens onde construíam um povoado. Assim com a maconha, como a cocaína. Todas essas substâncias eram usadas normalmente dentro de seus países de origem sem maiores preocupações “sanitárias” e muito menos jurídicas-policiais.

Mas uma boa maneira de excluir os outros é falar mal de suas práticas, de sua linguagem (foi assim também que surgiram os “palavrões” feios que não se podiam falar), de seus costumes. O povo predominante, aquele que já estava estabelecido ali antes dos imigrantes, acabavam, por pressão social-política a incutir em seus membros e, principalmente, nas crianças, o quão feio eram as práticas, as linguagens e os costumes dos povos “bárbaros”. Não demora que se chegue essas avaliações moralistas no âmbito político-jurídico para estabelecerem leis contra essas práticas e costumes. E assim nasce a opressão contra os povoados, pois já que não se podia excluí-los fisicamente – até porque eles prestavam bons serviços ao povo predominante – excluem eles dentro de sua própria área, estabelecendo como imorais e ilegais suas práticas e costumes. Se bem que pessoas do próprio povo predominante também acabavam por aderir às práticas e costumes dos agora “excluídos”, e acabavam por se tornar desertores dos próprios costumes e por isso eram perseguidos como “fora-da-lei”.

Então, quando falo das drogas psiquiátricas, não estou condenando o uso de drogas para comportamentos e modificação da consciência ou de estados mentais pelas pessoas. Isso é outro assunto que ainda abordarei aqui, que tem a ver com medo e dor, e Epícuro pode nos ajudar nesta reflexão. Mas isso é outra história.

O que me interessa aqui é estabelecer que o uso de drogas psicoativas pela humanidade acompanha seu desenvolvimento e seus registros até os dias de hoje. O uso “recreativo”, ou seja, fora dos rituais estabelecidos, sejam religiosos ou místicos, foi a principal causa do aumento do vício e da perda do controle das pessoas que acabaram usando essas substâncias. E o moralismo excludente dos povos predominantes foi a maior causa de considerar uma vida boa aquela que está fora do uso de substâncias psicoativas dos “estrangeiros” ou povos “bárbaros”. A questão de polícia e jurídica das drogas foi uma extensão desse moralismo pernicioso e excludente. Antes disso ninguém considerava uma vida sem substâncias psicoativas a melhor vida a ser vivida.

E não será eu ou a filosofia clínica que dirá isso também. Minha única questão com a psiquiatria biológica é que ela hoje é a maior vendedora de substâncias psicoativas de forma legal no mundo. O poder da caneta do psiquiatra dá legitimidade social-jurídica ao uso dessas substâncias, que antes estavam nas mãos de gurus, xamãs, líderes religiosos etc. E tudo estava controlado por eles, sem o uso majoritariamente “recreativo” na população.

Mas antes, esses líderes místicos e religiosos, não mentiam sobre o uso e os fins que cada substância tinha em seus rituais. Sua linguagem era mágica e sobrenatural, mas não enganavam seus praticantes. E a psiquiatria biológica mente descaradamente para todos nós dizendo que o uso dessas substâncias “cura” um desequilíbrio químico ou algo parecido em nosso corpo, especificamente em nosso cérebro. E ainda dá nomes a essas substâncias que levam a crer nessa mentira, como antidepressivos, tentando igualar à linguagem médica objetiva quando coloca um medicamento como antibiótico ou anti-histamínico. O problema é que as drogas psiquiátricas não são como as médicas. São exatamente como eram as substâncias psicoativas dos rituais religiosos e místicos. Mas, finge-se de médica e científica.

A psiquiatria biológica poderia ser os xamãs de hoje, dando acesso aos psicoativos para todo aquele que queira experimentar suas drogas. Não teria os rituais que tinham antes, mas pelo menos diria mais a verdade se dissesse que essas drogas não curam nenhuma doença específica no corpo, seja em que órgão for, e que seus efeitos são de alteração de consciência e mental para uma “viagem” a outra dimensão, seja para buscar uma iluminação mística, seja para simplesmente fugir da dor quase insuportável, seja para suprimir um comportamento extremo e indesejado de uma outra pessoa. Mas isso não é terapia, isso não é medicina e isso não é ciência.

O que me indigna com a psiquiatria biológica é que ela roubou de uma vez tanto as práticas e costumes dos outros povos quanto o privilégio ao acesso legal a essas substâncias. Rouba a cultura, impede o acesso e mente sobre o uso, as causas e os “efeitos colaterais” (em um vídeo do canal já falei sobre isso dizendo que não há “efeitos colaterais” para drogas psicoativas. Ver em https://youtu.be/jp4Zovtd3cs) dessas substâncias. E tudo apoiado pela classe médica e pelo judiciário.

Os psicoativos fazem parte da cultura humana e não podem ser aprisionadas por uma classe que tem como grande apoio por trás, além da duvidosa classe médica que sempre tem uma fronteira cinza com a moralidade, o judiciário, que agradece por uma classe “tomar conta” dos casos sociais que estão excluídos ou quase de suas leis positivas, ou seja, os lunáticos e desviantes mentais/comportamentais, e também com o apoio massivo financeiro da indústria farmacêutica.

O uso dos psicoativos deve voltar para a cultura e para seus povoados ou povos e deve ser um assunto sempre alerta, um assunto sobre educação como para qualquer vício (inclusive o vício das tecnologias de mídias sociais e afins), não repressora, mas comunicativa e por debates éticos-sociais-antropológicos sobre a questão. E, portanto, deixar de ser um assunto de polícia e, principalmente, de uma classe privilegiada que usa da mentira e do engano para se fortalecer.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Filósofo Clínico. Escritor. Em 2019, por indicação do Conselho e Direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Málaga/Espanha

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