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Quem pode ser guardiã? ***

 

 "Não façam da Filosofia Clínica uma propaganda mentirosa.”

                                     Lúcio Packter 

"Chega mais perto e contempla as palavras”, disse Drummond em uma das linhas finais de seu poema Procura da Poesia.  Desse verso, dentre outras possibilidades mais acadêmicas, veio a liberdade e a orientação para o uso e a aproximação da palavra guardiã, neste texto, que foi suscitada por uma imagem emblemática, no final de um filme assistido há muitos anos atrás - cujo nome a memória apagou- e que serviu às reflexões aqui registradas.

Guardiã não é sentinela nem vigia. Não tem função punitiva, de controle ou aprisionamento, com caráter coercitivo. Guarda, cuida, protege com atenção constante. Função solitária, por vezes. É um proteger o que está dentro. Quem está dentro pode sair, mas quem está fora para entrar precisa passar pelo aval da guardiã que, nesse sentido, tem um certo poder decisório.

Na única lembrança do filme, a cena final,  a guardiã, uma mulher,  está à janela, de costas. Guardiã não tem rosto, mas tem corpo.  Olha para fora. Quase não se move, só olha e observa, atentamente. Não tem armas nas mãos. Até porque seu inimigo não é visível. Seu objetivo não é o confronto nem defesa. É proteção. É   poder antecipar-se ao perigo, ao mal, se possível. Não está neste lugar por contrato, ordem, mando ou comando de outrem.  Nem é por escolha, tampouco.

A Filosofia Clínica, que nasceu no Brasil com Lúcio Packter, também é guardiã. Diferentemente de aspectos apresentados no verbete guardiã, - Dicionário Oxford de Filosofia (1997, p. 174) -, não é governante, nem assume papel militar, nem de administração pública, tampouco é um cão de guarda. Mantém semelhança com os guardiães da República de Platão no que concerne à sensatez e à afabilidade com os humanos e ao buscar a imparcialidade no exercício da função.

A Filosofia Clínica revela-se guardiã de suas convicções metodológicas como terapia depois de vivências, muitas batalhas e enfrentamentos travados durante sua caminhada em defesa de um olhar diferenciado para lidar com o sofrimento e as angústias humanas, oferecendo uma alternativa aos métodos já estabelecidos. Ao assumir seu papel existencial, definiu do que e de quem ela é guardiã. Guardiã de princípios e valores éticos que promovam a vida humana, com liberdade e respeito às singularidades.

A Filosofia Clínica como guardiã está por aí, algumas são identificáveis, outras nem tanto. Guardiã age no silêncio, porém essa ação silenciosa é prática atenta, permanente e foi assim constituída por seu mentor nos anos 90, lembra Miguel Caruzo ao registrar que “Foi sua prática de pesquisa que o levou a construir o método, e não as teorias que o levaram a compreender as pessoas.” 

O terapeuta deste método também é um guardião. Guarda os pressupostos metodológicos que norteiam a sua prática de consultório. Mas não é um guardião imóvel, enrijecido, inflexível.  Sem exigência de perfeição, ele não é um santo nem um religioso. É um ser do mundo no mundo. O próprio método o liberta e propicia esse espaço. “É vital ao filósofo acatar respeitosamente suas emoções, seus sentimentos, suas intuições como legítimas, mesmo quando não compreende as razões.”, coloca Lúcio Packter. Um guardião é um outro humano.

Hélio Strassburger, em sua obra "A Palavra fora de si", reafirma essa posição ao registrar que “A Filosofia Clínica ao se constituir em uma terapia, trata de pessoas. Num processo dialético, também oferece ao papel existencial cuidador eventos de transformação e crescimento. Para tanto, reivindica uma interseção onde se apresente: coragem, abertura, acolhimento, impulso na direção do outro; noutras palavras: gente cuidando de gente.”

A Filosofia Clínica guarda seu lugar com critério e rigor. Protege sua mensagem de acolhimento da singularidade existencial humana sem tipologias. Defende as bases que fundamentam   seu método como um paradigma libertador das padronizações. Este lugar guardado não é um hotel, mas recebe e acolhe quem o procura com o intuito de fazer dela morada. Lugar aberto, aparentemente sem portas, mas bem cuidado pelos guardiães.

*Jandira Ramiro

Filósofa. Filósofa Clínica. Integrante do Conselho Editorial da Revista da Casa da Filosofia Clínica.

**Texto originalmente publicado na revista da Casa da Filosofia Clínica. Edição de outono/2023. 

Niterói/RJ

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