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Antipsiquiatria e filosofia clínica***

 

A psiquiatria biológica não é medicina, não é científica, seus medicamentos não são tratamentos e seu livro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM em inglês) não diag-nostica nenhuma doença mental. Mas se tudo isso for uma verdade, o que tem a ver com a filosofia clínica?

Sem entrar na questão ideológica que há por trás da psiquiatria biológica - a construção de conceitos de “doenças mentais, o jogo do lucro que promove, favorece e impulsiona a indústria farmacêutica e o grupo de elite dos criadores da medicalização da vida, a reengenharia social através dos poderes institucionais da própria psiquiatria e das instituições que a apoiam etc. - ela é o oposto contraditório da filosofia clínica na questão de como se percebe o fenômeno humano.

Em primeiro lugar, a psiquiatria biológica usa do verniz da medicina e da ciência como formas de “investigar” o comportamento humano. Digo “verniz” porque não passa disso, pois, psiquiatria biológica não é medicina nem ciência. Mas, vestida desta capa de pseudo-medicina-científica, ela recebe o fenômeno humano não em bases existenciais, históricas, sociais, intersubjetivas, mas como um cirurgião que se aproxima de um coração que está falhando. Mas se eu for mais exato, nem a medicina mesma se aproxima de um coração assim, pois interessa a ela todo o histórico biológico e de práticas do corpo que tem essa pessoa portadora deste coração. Portanto, a psiquiatria biológica já não age como seu modelo principal, o médico da medicina objetiva.

Ao considerar o humano como se fosse um “objeto” científico, ela se afasta de qualquer tipo de terapia que compreende o ser humano em suas bases existenciais em toda sua complexidade na trama de seu mundo e de suas representações sobre ele, sobre si e sobre os outros. A filosofia clínica vai além e tem em conta cada indivíduo como singular e não somente no sentido de sua história e contexto, mas em sua estrutura de pensamento.

No momento em que se chega ao conceito de singular, não há mais como usar a metodologia da psiquiatria biológica, que também imita do modelo médico: os diagnósticos. Mas o que é um diagnóstico?

De forma muito geral e comum, diagnosticar é quando através de poucos elementos tentamos definir a característica geral do todo por poucos elementos. Quase todos fazemos isso, por exemplo, quando temos contato com algumas pessoas de uma cultura diferente da nossa e já definimos toda a cultura por essa “amostragem”. Ou quando uma professora ou professor define a criança por alguns eventos dela que lhe chamaram atenção. Ou quando vemos algumas características de um comportamento e já “deduzimos” as causas dele e, por isso, já “sabemos” como será essa pessoa no futuro. Ou quando um psicólogo define o “perfil” de uma pessoa através de alguns elementos de sua resposta.

Normalmente digo que diagnosticar é uma forma de “atalho cognitivo”. Não temos a competência da análise, ou pode ser que custe muito tempo e esforço, ou que não tenhamos todos os dados relevantes da situação, ou queremos poupar tempo ou tudo isso junto mais o fato de que queremos “saber”, queremos uma direção, um rumo que nos dê um caminho para nossa ação. Então, precisamos “diagnosticar”. Os parcos elementos dos quais nos baseamos para interpretar o todo a partir destas partes, na medicina, se chamam de “sintomas”.

Então, um conjunto de “sintomas” estabelece um “quadro” que define o todo pelas partes. Em casos onde os dados são objetivos, reais - como a biologia, a física, a arqueologia - e ainda se tem um bom histórico de informações antes, pode-se tentar fazer uma indução - e não dedução - do que aparece, e assim fazer prognósticos. Mas e quando não há dados objetivos, reais? Quando os dados são de fonte subjetiva - a representação, a memória, as emoções, as verdades pessoais de cada um -, como fazer para “diagnosticar”? Se formos coerentes e honestos, vamos chegar à conclusão que não há como diagnosticar o singular. E comportamentos são frutos de “causas” subjetivas, de interpretações pessoais de cada um à respeito de si e de seu mundo. Então, como a psiquiatria biológica diagnostica comportamentos? Por mais que comportamentos humanos possam ser muito parecidos uns com os outros em determinadas situações, isso ainda não chega ao âmago do singular, de como é isso para “esta” pessoa.

Não tem o menor sentido a filosofia clínica, que lida com o singular, aceitar um diagnóstico ou trabalhar com alguma forma de diagnóstico. Todo diagnóstico tem a pretensão de ser ou particular – para algum grupo de pessoas - ou universal - para todas as pessoas. Diagnóstico “singular” é uma contradição em termos. Quando percebemos o singular de cada um, isso não é um diagnóstico, mas uma apreensão daquilo que é irrepetível fora desta estrutura de pensamento.

Filosofia clínica e psiquiatria biológica são pontos opostos no mundo das terapias, a última tentando fazer do humano um objeto científico através de um verniz médico-científico e a primeira acolhendo e respeitando o singular em cada um.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Escritor. Palestrante. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Málaga/Espanha.  

**Texto publicado na edição de verão/2023 da Revista Casa da Filosofia Clínica.

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