“Saber melhor sobre a historicidade de cada pessoa, fazia tudo dançar mais feliz, leve.”
Um belo dia ela saiu de casa
determinada a ser algo mais, além de mãe. Seu amor insistia, agendava,
incentivava que ela tinha um talento para a arte. Buscou a filosofia clínica
para ensaiar-se. Na época os atendimentos aconteciam de modo presencial, na
Cidade Baixa, Porto Alegre. Em clínica ela entendeu que a paixão dominante
podia sair para dançar. Convidou a busca, a semiose e a expressividade e começaram
a experimentar. Uma dança aqui, outra ali, bem aos poucos porque o papel
existencial de mãe lhe tomava por inteiro, em uma dedicação admirável,
prisioneira, estruturante. Respeitamos seu tempo, “sempre tem o momento certo”.
Sim, ela dizia acreditar que
“sempre tem o momento certo para as coisas”. Uma axiologia a assimilar o tempo,
tomar fôlego, recuperar as forças perdidas nos agendamentos infortúnios das
relações familiares. Quando pequena lhe tiraram a tela e a tinta das mãos, foi
formando ali a artista que é. Seguimos cuidando de o que acha de si mesma. Com
a ajuda da paixão dominante e seus convidados, volta e meia saía para dançar.
Foi assim que começaram a aparecer delicados galhos, verdes folhas, coloridas
flores aquareladas, bichos, gente. Ela percebeu que saber melhor sobre a
historicidade de cada pessoa, fazia tudo dançar mais feliz, leve.
Começou a retratar gentes,
sorrisos, olhares, detalhes da face em minúsculas e minuciosas capturas,
percepcionando e expressando com lápis e tintas, as cenas da vida em recíprocas
de inversão, submodo determinante para o ir e vir no fazer da artista desta
fase. Inicialmente em eventos doloridos nesse exercício, ajustando aqui e ali,
as emoções.
Os medos foram des-cobertos e investigados com dedicação, auxiliados por uma epistemologia analítica. Percorremos juntas os meandros das emoções e seus desdobramentos, travamentos, bloqueios...acabou fazendo amizade com elas. Em paralelo ensaiava as esteticidades seletivas.
Sua reestruturação ocorreu em
tempo próprio, subjetivo. Sofreu os efeitos colaterais de seus remédios
internos, somatizou, mas amparada pelo acolhimento em clínica, seguiu em frente
para conhecer mais e melhor sua singularidade. Agora mãe e artista em uma
combinação potente. Os cuidados com a casa, com o filho, consigo mesma, com seu
amor e uma ou outra amizade verdadeira, a vó...a solidão da maternidade, a ascensão
de um governo fascista, a pandemia pelo Covid e suas mudanças, o desafio dos
afetos e redes de apoio, trataram de lapidar a alma e o fazer da artista em
meio a dor e prazer, descanso e insônia, mortes e vida.
Processo irreversível, autogenia
complexa, bonita, sólida, a reinventar-se sempre que necessário. Uma autogenia
a compor raridades. A mulher, nisso tudo, se fez mais ciente de si, do mundo,
de seus talentos, de suas relações, de seu poder. Por isso, é um ato
revolucionário, em muitos sentidos, poder exercer o que se é!
Agora quer mais...a autonomia
surge no momento em que a partilhante deixa a clínica para ensaiar-se em outros
lugares, desbravar territórios, mas também quando retorna ao consultório da
filósofa clínica para ajustes, atualizações e organização de sua estrutura de
pensamento e submodos, cuidando da vida que segue avante. Hélio Strassburger
ensina que os deslocamentos exercidos pelas pessoas partilhantes dentro do novo
paradigma da filosofia clínica costumam ter caráter libertário, sendo essa uma
das características resultantes de um método que pretende dar espaço, fazer
surgir e especialmente acolher a singularidade inevitável de cada sujeito.
Ademais, o reconhecimento e a
aceitação de si e de sua circunstância única recolocam a partilhante em um
local de sujeito de sua própria história e destinos, de seus feitos e des-feitos
em busca de dias melhores, mais significativos e de acordo com suas possibilidades,
seus limites e horizontes.
Um dos maiores riscos ao entrar
em um consultório pautado pelos métodos da tradição, é o encobrimento e em
certos casos o aprisionamento dessa bela singularidade, com o alienista tratando
de encerrá-la em algum diagnóstico e domá-la através da dependência medicamentosa,
muitas vezes uma vida inteira, para a alegria da indústria farmacêutica, que
junto com a armamentista e os bancos, lideram o ranking dos lucros e a façanha
capitalista na criação de grandes desigualdades sociais. Mais um motivo pelo
qual a filosofia clínica pode e até deve ser um ato de caráter libertário no
reconhecimento e validação das singularidades.
Autogenias como essa podem ser
freadas, “mortas” ou modificadas quando os sujeitos são destituídos da
oportunidade de compreenderem a si e de serem compreendidos nesses momentos de
travessia. Não há necessidade de aquele que cuida assumir um lugar de saber-poder
à priori diante daquele que é cuidado, ao contrário, a filosofia clínica vem
para dizer que o saber-poder está no próprio sujeito. Sem esse sujeito não há
clínica possível, portanto, a compreensão da singularidade acontece, para o
clínico e para o partilhante, no decorrer dos encontros, em um tempo e lugar
comum, constituídos pela qualidade da interseção aprendiz.
*Dionéia Gaiardo*
Filósofa Clínica. Escritora. Mãe
do Gael.
Passo Fundo/RS
**Texto originalmente publicado
na edição Primavera/23 na Revista da Casa da Filosofia Clínica.
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