“Parece-me que a
aposta, o desafio que toda história do pensamento deve suscitar, está
precisamente em apreender o momento em que um fenômeno cultural, de dimensão
determinada, pode efetivamente constituir, na história do pensamento, um
momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de
sujeito moderno.” (Michel Foucault, A Hermenêutica do Sujeito, 2006, p. 13)
Ao abordar o cuidado de
si, Foucault ressalta tratar-se de um fenômeno cultural que surge num
determinado contexto e estende-se por um período também determinado
caracterizando a filosofia antiga como “preceito de vida”, i. é, uma vida
filosófica implica não somente o conhecimento de si, mas antes e principalmente
o “cuidado de si”. Torna-se fundamental apreender, ou seja, “assimilar
mentalmente, abarcar com profundidade, compreender, captar”, esse fenômeno para
que se possa dimensionar sua importância e o seu impacto na história de vida
das pessoas e da sociedade.
O cuidado de si, como
fenômeno historicamente determinado, afetou o modo de pensar e o comportamento
de gerações futuras, passando pelo início do cristianismo até o período moderno
e, podemos dizer, continuando pela atualidade. Resta saber se esse fenômeno foi
e está sendo devidamente apreendido.
Foram e são muitos os
movimentos surgidos, especialmente quando da “virada do terceiro milênio”
(lembrando que essa demarcação do tempo diz respeito à civilização
ocidental-cristã), ressaltando a necessidade e a importância de as pessoas
atentarem mais para o cuidado de si e para o cuidado com o meio em que vivem.
Movimentos esses das mais diversas orientações ideológicas, políticas,
espiritualistas, religiosas etc, o que não nos cabe discutir aqui, embora isso
mereça um olhar crítico. Mas alguns questionamentos podem ser postos, tais
como:
– Com o avanço
vertiginoso do neoliberalismo, até que ponto as políticas dele derivadas,
determinadas pelas grandes corporações agro-industriais-financeiras, p. ex., e
acatadas pelos governos, fazendo uso dos grandes meios de comunicação, cooptam
a i deia do “cuidado de si” para implementar e inculcar nas pessoas a ideologia
de que se deve buscar esse “auto-cuidado” cada um por si, num excesso de zelo
individualista, onde o mérito de cada pessoa determine quem são e serão os
vitoriosos e os fracassados, gerando angústia e letargia naqueles que não
conseguem alçar os degraus da fama e da riqueza por serem apontados e se
acharem fracos e incapazes?
– O impacto das novas
tecnologias e o acesso ou a falta de acesso a essas tecnologias: Como colocarmo-nos
frente aos avanços científico-tecnológicos e repensarmos o cuidado de si nesse
contexto, garantindo que cada pessoa, na sua singularidade, e a sociedade como
um todo sejam respeitadas e tenham suas necessidades para o bem viver
garantidas?
– Como posicionar-se
dentro da natureza, pensando e agindo de modo que os outros seres viventes
também sejam reconhecidos como “sujeitos” de direitos?
– Como pensar-praticar
novas políticas e formas de participação nos rumos das sociedades condizentes
com os desafios da contemporaneidade?
Essas questões e outras
tantas que possam surgir visam enfocar o como esse fenômeno cultural surgido na
Grécia antiga, iniciado e incentivado pelos filósofos de então, marcou a
história do pensamento e da própria Filosofia, pois também foram e são vários
os “movimentos filosóficos” que tomam o cuidado de si como uma orientação para
a construção de teorias e práticas que visam ressaltar a ideia de um
conhecimento filosófico condizente com modos de ser e estar no mundo.
Este é e continuará
sendo um desafio para a Filosofia Clínica em particular, justamente por ser ela
um saber e um método terapêutico que visa o cuidado para com a pessoa,
considerando sua historicidade, contextualizada numa história maior, cujos
acontecimentos interferem, ora com maior ora com menor intensidade, na vida de
cada sujeito.
Compete também aos
Filósofos Clínicos, que pesquisam e elaboram saberes-conhecimentos próprios da
Filosofia Clínica, fazendo uso de todo o saber-conhecimento filosófico
construído até agora, mas que principalmente colocam-se diante de seus
partilhantes ouvindo atenta e respeitosamente suas histórias e caminhando com
eles na busca de um viver mais atento e cuidadoso para consigo mesmos e para
com o mundo, observar quais os fenômenos culturais, políticos, sociais têm um
impacto maior na vida de cada um, das comunidades e da sociedade em geral, e
que influenciam positiva e negativamente nos modos de pensar e ser das pessoas.
O cuidar do outro e o
cuidar de si deve contemplar essas e tantas outras questões possíveis…
*Paulo Roberto
Grandisolli
Filósofo Clínico
São Paulo/SP
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