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Clínica não pastoral***

Elevador do prédio do consultório uma moça fala pra outra, apontando pra mim: “Você se decida, se não vai ter que ir falar com este doutor aqui!” Quem lê isso pode achar que sei o que ela deve fazer. E – Acredite! – tem muito terapeuta que vai nessa que sabe o melhor a fazer, o caminho a seguir, sem ter a mínima ideia de quem é a pessoa. Tem algumas pressuposições genéricas de como uma moça dessa idade pensa, faz e sente, do que é importante pra ela na vida, e será a partir disso que vai aconselhá-la. 

Age como bom pastor ao conduzir rebanho: ovelhas para o pasto, fiéis para a salvação, essa moça para a melhor decisão. Já sabe de antemão pra onde ela deve ir, como decidir sua vida. Quase um lugar comum. Mesas dos bares além dos chopps estão abarrotadas de conselhos fáceis que raramente tocam a quem se dirigem. Cada um olha e fala a partir da sua vida, de como vê o mundo. Quase sempre não tem nada a ver com a pessoa.

A mim, filósofo clínico, cabe suportar e susten-tar minha ignorância sobre ela. No fundo só tenho um caminho a propor: ela fala, eu escuto. Ela tem lá suas razões, medos, talentos e expectativas. Vive uma infinidade de relações com seus mundos, pessoas diversas, em circunstâncias que não conheço, não sei, não posso avaliar. Tudo isso misturado de uma maneira só sua. Ela pode vacilar, talvez ponderar, ou decidir impulsiva-mente. De qualquer modo sempre decidirá do seu jeito. Chamamos isso de singularidade.

Cada um tem a sua própria. Ela tem, você tem, eu tenho. A Filosofia Clínica parte do que é só desta moça, do que lhe é próprio, diferente de qualquer outra. Filósofo clínico, não lido com alguém como se fosse um crente, que segue pela vida sem pensar, afinal, pensar não é facultativo, constitui o que é humano. Caminho, quieto, ao lado dessa pessoa que vai aprendendo a si – e eu a ela e eu e ela a mim - ganhando empunhadura e confiança em seu modo próprio de lidar com o desconheci-do, experimentadora de suas forças e fraquezas, talentos e insuficiências.

Suas potencialidades estão em processo e a mim cabe acompanhar o ritmo dessa fluência e brigar com meus impulsos de inter-ferir, in-fluir, in-formar, im-por direções. A ética da clínica em plenitude exige bom convívio com o não-saber. No Recanto da Filosofia Clínica chamamos isso, heideggerianamente, de clínica não pastoral. “Fiz do silêncio uma prece e respirei o ar da noite, entregando-me outra vez a digna confiança do acaso...” escreveu a colega Daísa Rizzotto Rossetto: “Tem muito terapeuta que vai nessa que sabe o melhor a fazer, o caminho a seguir, sem ter a mínima ideia de quem é a pessoa.” Clínica não pastoral

*Dr. Cláudio Fernandes

Filósofo. Filósofo Clínico.

São Paulo/SP

**Texto publicado originalmente na edição de Inverno da Revista da Casa da Filosofia Clínica.

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