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A Filosofia Clínica e o robô de escuta***

       

O site: www.mittechreview.com.br publicou em janeiro/2022: “Terapeutas podem usar Inteligência Artificial para melhorar os resultados das terapias”. O artigo foi assinado pelo: MIT- technology review.  

Inicialmente a proposta é de auxílio ao trabalho clínico do profissional da área PSI. Trata-se de uma pesquisa para saber como a terapia funciona. Uma verificação das linguagens utilizadas na hora clínica. Segundo o artigo: “busca identificar as expressões e devolutivas de resposta mais eficazes no tratamento de diferentes distúrbios”. Oferece uma “automação dos princípios ativos da terapia”.

O projeto se desenvolve em universidades como: Washington e Pensilvânia (EUA), numa parceria da IA – inteligência artificial com a psicologia. Diz assim: “Busca-se desvendar os segredos de porque alguns terapeutas obtêm melhores resultados que outros (...) a tecnologia funciona semelhante a um algoritmo de análise de sentimentos”.

Prossegue afirmando: “a IA converte a linguagem de uma sessão em código de barras (...) busca mostrar quanto tempo foi gasto em terapia construtiva versus bate-papo geral.” Na sequência: “(...) desenvolver um software de terapia para ajudar terapeutas a padronizar as melhores práticas. Propõe monitorar os atendimentos. (...) o algoritmo aprendeu a abordagem da TCC (terapia cognitivo comportamental)”. O artigo fala em: “proporções, taxas, métricas, validação... (...)” indica: “devemos seguir protocolos para evitar improvisos. (...) podemos entrar numa era de medicina de precisão em psicologia e psiquiatria (...)”. A investigação deixa escapar - nas entrelinhas - que as terapias da tradição estão despreparadas para cuidar da vida humana.

A ideia não é nova. Em meados dos anos 1990, em Porto Alegre, um mestrando em análise de sistemas ofereceu algo semelhante. Seu software prometia “diminuir o tempo gasto nos atendimentos”. Segundo ele: “aliviaria o trabalho” dos Filósofos Clínicos. Após algumas entrevistas, o jovem profissional entendeu que nosso método era diferente. Ficou contrariado pelo fato de sua ideia não dar conta da Filosofia Clínica, basicamente, por se tratar de uma abordagem singular, oferecendo uma terapia para cada pessoa, sem a camisa de força das tipologias, classificações, hermenêuticas apriorísticas.   

Nos dias de hoje, ao ver essa hipótese - em nova maquiagem - se reapresentando, com o enorme investimento para viabilizá-la, percebo - mais uma vez - o quanto a Filosofia Clínica é diferenciada. Sob muitos aspectos ininteligível - mesmo a espionagem tecnológica - ao pessoal que procura em blogs, textos da internet, palestras, subsídios para montar suas estratégias. Por outro lado, a partir de uma robotização da hora-clínica, essa iniciativa deverá acelerar a desconstrução das metodologias de base PSI.  

Um olhar atento pode pensar: como replicar eventos singulares, incomuns, como os desdobramentos da hora-sessão em Filosofia Clínica numa linguagem de algoritmos? A nova abordagem terapêutica, ao atuar com pressupostos a posteriori, reivindica um profissional que tenha borogodó (mescla de aptidão, talento, sensibilidade...) para exercitar uma clínica aprendiz. Esse conceito por si só, já interdita a possibilidade de se mapear, criar protocolos, estatísticas, métricas de validação, devido ao caráter inédito dos atendimentos.

O novo paradigma oferece múltiplos fatores que escapam a uma lógica de robôs de conversa. Seu constructo metodológico oferece atenção e cuidados singularizados aos partilhantes, encontrando em seu próprio discurso existencial, uma referência viva, única, irrepetível. Não se presta a ser refém de softwares, algoritmos, código de barras. A pesquisa americana, ao buscar um padrão nas melhores técnicas, engessa e robotiza o cuidado com humanos. Talvez essa proposta sirva a países de vocação colonial.   

A transcrição da linguagem utilizada pelo filósofo clínico com um partilhante, não irá servir para outro atendimento, pois além de cada pessoa ter um uso próprio do seu vocabulário, a qualidade da interseção não é a mesma, e o filósofo efetua ajustes singularizados de acordo com os desdobramentos da hora-sessão. Um software não consegue imitar essa modalidade terapêutica, pois teria de ser um humano com borogodó para intervir em um processo não linear.

Essa tese de padronização comportamental através de um código de barras, para acompanhar sujeitos em seus momentos de ressignificação existencial, além de desumana e perversa, visa a manipulação e o controle da vida humana. Sob muitos aspectos, expõe a fragilidade das técnicas de base PSI.

Noutras palavras, a partir dessa estratégia denominada: “robô de conversa”, as metodologias que trabalham com a bíblia DSM serão reféns da IA e sua programação para mediar atendimentos. A pesquisa americana deverá mostrar, após alguns anos ‘faturando alto’ com suas engenhocas, se tratar de mais uma investida para ‘ganhar tempo e dinheiro’, multiplicando espíritos de rebanho. No caso de bem-sucedida poderá ser o fim da raça humana como espécie.

*Hélio Strassburger

heliostrassburger@casadafilosofiaclinica.com

@helio_strassburger (Instagram)

Filósofo Clínico.

Porto Alegre/RS

**Texto publicado na edição de outono da revista da Casa da Filosofia Clínica. 

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