A noção de linguagem que Wittgenstein apresenta nas suas Investigações Filosóficas, cuja concepção é a de que o significado das palavras depende de seu uso na linguagem, em Filosofia Clínica se traduz como um dos princípios dos cuidados de que deve ter o filósofo clínico na sua atividade clínica, nas acolhidas existenciais a que se dispõe, e que, adversamente às técnicas tradicionais da psiquiatria ou das psicologias tradicionais - que não fazem senão hermenêutica sobre o discurso ou expressividade do indivíduo – permitirá guardar o sentido mais original da palavra no contexto discursivo do sujeito, ou seja, respeitando ou limitando-se a entendê-lo a partir e à medida de um sujeito em seu território. Sendo um projeto único, permite-se acessar todo um vocabulário, recheado de significados singulares para cada expressão de sua semiose.
Aquilo a que chamou “jogos de
linguagem” refere-se, segundo o próprio Wittgenstein, aos vários usos das
palavras e ao conjunto das atividades com as quais estão ligadas, sendo a
própria linguagem a representação de uma forma de vida.
Este modo de conceber a
representação de uma forma de vida pela semiose, inspira e permite à Filosofia
Clínica acolher e tratar o sujeito em seus dias de maior abertura,
compartilhando uma via de comunicação e abertura ao seu mundo: seu modo de ser
e mostrar-se.
Uma terapia é também uma via de
mão dupla, um intercâmbio de mensagens, que permite tornar comum, através da
linguagem, um espaço-instante de vivência. A filosofia enquanto clínica, ou
enquanto cuidado, propõe que o ser terapeuta disponibilize-se a tratar, no
sentido de cuidar, as questões e dores existenciais daquele que o procura para
delas partilhar.
É um encontro de duas
singularidades em dialética, na qual só haverá de fato dialética se houver
antes a interseção que permita a comunicação, seja ela verbal, silenciosa... A
linguagem pela qual o ser se expressa consigo mesmo e com o mundo, será o registro
de sua singularidade, e ninguém, além daquele que a utiliza, ou seja, o próprio
sujeito partilhante, poderá desvendar seus conteúdos, sem a sua permissão e
cumplicidade.
Sendo assim, partindo do
princípio de que a linguagem é um fenômeno único (embora possa ser
compartilhado), a Filosofia Clínica ocupa-se por considerar cada gesto
semiótico presente no manifestar-se do indivíduo.
Então, em Filosofia Clínica, não
há que se adequar a linguagem semiótica do sujeito a um predeterminado padrão
de comunicação; mas sua tarefa será a de investigar qual (is) linguagem (s) o
partilhante utiliza para se expressar. Não há um ou dois tipos de linguagem,
mas uma multiplicidade deles.
Linguagem é toda comunicação por
sinais. As palavras, as letras, a própria fala (como sinal sonoro), e também as
cores, a música, expressões artísticas, os símbolos, são todos sinais. Sinais
de uma forma de expressão, que se manifestam na imensidão de seus mundos, nem
sempre compreendidos a partir deles mesmos.
E neste compartilhar de
vivências, o partilhante desnuda uma estrutura de pensamento que é seu próprio
“estar sendo” no mundo, arriscando-se às transformações possíveis no decorrer
de uma autogenia. Quiçá numa confusão de cores e sons, gestos e olhares, traduzem-se
significados e sentidos muitas vezes não-ditos. A linguagem se diz também no
silêncio proferido.
O filósofo clínico deve estar
atento aos sinais mínimos de cada linguagem, cuidando de não esquecer que a
linguagem por si própria sofre mutações, movimentando-se nas autogenias do
sujeito. Wittgenstein nos lembra que nossa linguagem pode ser considerada como
uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas
construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de
novos subúrbios com suas retas e regulares e com casas uniformes.
Assim, através de vice-conceitos,
ele nos ajuda a entender que a linguagem, bem assim o próprio ser, sofre
transformações, demolindo e reconstruindo-se no decorrer de uma existência a
cada instante pronunciada.
Não há espaço, segundo o modo de
pensar o sujeito em Filosofia Clínica, para determinações lingüísticas ou
pré-conceitos acerca do que diz – ou cala – o partilhante. O discurso não tem
valor senão contextualizado nas circunstâncias daquele que o profere,
manifestando respectivos valores e sentidos.
Eis, no entanto, uma dificuldade:
livrar a linguagem singular das amarras do senso comum, já que a ele fora dada
a tarefa de ditar regras de uso e significações das palavras, normatizando
“formas de falar”. Mas há uma pluralidade desses modos de dizer que quase
sempre são nulificados. Pois, segundo o próprio Wittgenstein, o que nos
confunde é a uniformidade da aparência das palavras, quando estas nos são
ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa.
Pois seu emprego não nos é tão
claro. E especialmente não o é quando filosofamos, justamente porque se há que
falar em natureza ou essência do exercício filosófico, este se traduzirá na
busca pela Verdade. Mas em clínica, a verdade será subjetiva, e a linguagem de
cada um servirá como sua guarda.
A abertura concedida ao sujeito
pela Filosofia Clínica –sendo ele próprio um ser “em aberto’, que se transforma
– e o respeito à verdade subjetiva não deixará espaço para uma hermenêutica
interpretativa – a não ser a do próprio sujeito – a qual tende à distorção e
desvio do sentido mais originário (a verdade) de cada um (hermenêutica
compreensiva).
Daí que nenhuma forma de dizer,
ao se desdobrar em olhares, as dinâmicas do corpo, a linguagem escrita ou
pronunciada, cores e música, a linguagem artística em suas múltiplas formas,
deverá ser ignorada: porque representar uma linguagem significa apresentar uma
forma de vida.
* Mariana Flores
Filósofa. Filósofa Clínica.
Rio de Janeiro/RJ
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