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Quase certezas*

Desde que me lembro por gente, tentei fazer as coisas para agradar aos outros, queria que todos gostassem de mim. Cumpria aquilo que a cultura pregava como certo. Naquela época, a maneira digna e decente de se viver incluía obediência, perfeição, honestidade, estudo, trabalho, sucesso. Precisava provar para a família e a sociedade o meu valor, então segui todas as regras ao pé da letra.

Nunca perdi o ano na escola, obedeci e respeitei meus pais e professores, fiz faculdade de Medicina, arranjei um emprego, casei no cartório e sinagoga, tive um filho. Sabe aquela propaganda de margarina com a família perfeita? Era mais ou menos assim, só faltou o cachorro correndo pelo jardim.

O tempo passou voando, como se minha vida estivesse rodando por uma esteira rolante acelerada. Nem todas minhas escolhas foram minhas. Eu era ator de um roteiro planejado para mim e nem me dava conta. Mesmo assim eu gostava e me sentia bem. Recebia aplausos em todos os palcos.

Não sei precisar quando nem como, mas algumas das certezas absolutas que me ensinaram e que ingenuamente acreditava como definitivas começaram a caducar.

Começando pelas canções da infância. Onde já se viu atirar um pau no gato, mas o gato não morreu? Inadmissível pensar nisso hoje em dia. Aquele outro velho e sábio ditado “Mais vale um pássaro na mão que dois voando” também prescreveu. Melhor para o mundo abrir a gaiola, jogar fora o anzol e libertar peixes e pássaros.

A passagem do tempo contando dias e horas e marcando a idade das pessoas pelos anos de nascimento também foi ficando defasada. Aprendi que o tempo cronológico é completamente dissociado do tempo emocional. Para quem espera, dias são séculos, mas para quem não vêm, dias são minutos.

Distâncias não são mais medidas por metros de separação e sim por portas que abrem e fecham. É possível encurtar distâncias e esticar o tempo sem envolver a razão.

E o que dizer do conhecimento científico? Tinha a mais absoluta certeza de que a ciência era a escola do estudo, erudição, saber e honestidade, imune à política e ao mercado. Confiava cegamente nas conclusões dos cientistas. Ledo engano.

A ciência não afirma nada, não sustenta posição alguma. Quem afirma e sustenta são os cientistas. E eles não afirmam nada em uníssono, não existe unanimidade em campo algum da ciência.

Uma teoria cientifica é apenas uma hipótese a ser testada, aperfeiçoada e eventualmente abandonada. A Ciência não nos oferece a verdade definitiva, mas descrições mais ou menos provisórias que funcionam até que sejam contestadas ou aperfeiçoadas. Vejam o exemplo atual das vacinas e tratamentos.

Casamento deixou de ser para sempre. Até mesmo o sempre não é mais para sempre. Nunca não quer mais dizer nenhuma vez ou jamais. Dependendo do contexto, sempre e nunca agora permitem exceções e até mesmo já foram utilizados como sinônimos.

Já não possuo mais certeza de nada. Convivo com as quase certezas. Imprensa, políticos, mídias sociais, justiça, governo, universidades, em quem confiar? Pelo sim, pelo não, decidi fazer como cantava Raul Seixas: “Pare o mundo que eu quero descer”. Saltei fora da esteira rolante que me consumia física, intelectual e emocionalmente e fui estudar Filosofia, na ingênua tentativa de entender a convulsão social.

As incertezas só aumentaram. Rebelde e assustado, comecei a andar na contramão. Bem devagar e sem bater em ninguém. Procurava um solo firme para não escorregar. Depois percebi que não precisava ir contra a corrente, apenas me libertar dela. Me desprogramar e reprogramar diferente. Mais ou menos como nascer de novo. Não tinha mais tempo nem energia para ser uma pessoa diferente para agradar as vontades de cada um.

Nesse processo, muito aconteceu. Pisei algumas vezes na bola, disse coisas que estavam entaladas, sofri rejeição, decepcionei, pessoas se afastaram, chorei, recebi abraços, beijos, tapas e desaforos também.  Dá um trabalho danado deixar de ser quem os outros gostariam que eu fosse para me tornar quem realmente sou ou quero ser.

Alguns destes acontecimentos se transformaram em artigos.   Pedidos de desculpa que não consegui verbalizar foram traduzidos em forma de crônica. Saudades se transformaram em poesia. A dor serviu muitas vezes como inspiração e as palavras como remédio. Escrevi indiretas para o mundo e me diverti muito quando alguém se identificava. Houveram recaídas literárias.

Estou num processo de desaceleração e questionamentos, longe de ser perfeito, correto, melhor ou pior que ninguém. Deixei a pressa de lado, não me preocupo tanto em receber aplausos ou subir em palcos, não tenho certezas absolutas, não acredito em tudo que me dizem.

A amostra da humanidade durante a pandemia não tem sido boa para acreditar que houve ou haverá uma transformação em termos de solidariedade, ética ou amor. Estamos aprendendo a ser felizes da maneira mais triste.

Sobrou algo para acreditar? Deus? Tenho fé e rezo para que o mundo e nossas vidas sejam o que Deus quiser. Mas será que ele ainda confia em nós?

*Dr. Ildo Meyer

Médico. Escritor. Palestrante. Mágico. Filósofo Clínico. Autor da obra: “Visita de Médico – Uma aproximação entre Filosofia Clínica e Medicina”. Publicada pela Editora Vozes/RJ, dentre outras. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Porto Alegre/RS

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