Em 1934, Edmund Husserl escreveu um texto intitulado “A Terra não se move. Investigações básicas sobre a origem fenomenológica da corporeidade, da espacialidade da Natureza no sentido científico-natural primeiro. Necessárias investigações iniciais” (trad. livre).
Não se trata, como se pode
inferir apressadamente, de uma negação do movimento da Terra, da ciência
moderna, muito menos de um terraplanismo ou alguma bobagem dessa ordem, tão
vigente em nossos dias. A proposta husserliana é nos fazer pensar nossa experiência
originária (no sentido ontológico) da Terra.
Sob o ponto de vista da ciência,
sabemos diversas coisas sobre nosso planeta e o universo: está em um Sistema
Solar, na Via Láctea, é um corpo ao lado de incontáveis outros e possui
movimentos de rotação e translação.
Mas, a fenomenologia filosófica nos leva a
experiência originária, às nossas referências imediatas a partir das quais nos
guiamos, vivemos e somos. Nessa experiência imediata, a Terra é um ponto imóvel
que serve de referência para os demais movimentos. Quando deixamos de nos
mover, ficamos parados.
Por mais que saibamos que a Terra
está girando a 1675 quilômetros por hora, não é essa a experiência que nos guia
no cotidiano. Continuamos a vê-la imóvel e as demais coisas se movimentando
sobre ela. Não é apenas um ponto de vista, é o referencial de existência.
A história da humanidade é
construída a partir desses referenciais originários. O conhecimento científico
nos traz inúmeros benefícios e amplia nossa visão. Mas, nossa “casa” é o lugar
a partir do qual pensamos nossa existência.
Husserl chega a considerar alguém
que viesse a nascer em uma espaçonave e vivesse nela por anos. Nesse caso, a
referência dessa pessoa seria a nave, esta seria sua “terra” e a Terra, outra
coisa.
No caso da filosofia clínica,
esta proposta é mais radical. Cada pessoa tem sua própria “terra” como
referencial. Os referenciais internos, os modos de agir e as referências
externas são únicos. Por isso, o filósofo clínico precisa utilizar a escuta
para chegar à representação de mundo do outro. É claro que não se faz isso por
exatidão, mas por aproximação.
O trabalho do terapeuta é
fenomenológico na medida em que considera o que aparece na fala de seu
partilhante e busca ver o mundo como aparece para ele. A suspensão de juízo do
consultório é a busca por minimizar as interferências da própria representação
na representação alheia.
O “chão” de cada um de nós é mais
do que um referencial físico. Nosso “chão” é constituído de nossas relações,
família, cultura, formação, sofrimentos, alegrias etc., de como lidamos com
tudo isso e de como essas coisas nos moldaram.
Se a Terra se move ou não, não é
uma questão do filósofo clínico – às vezes, nem do filósofo. Ele não está
preocupado com o que se diz “objetivamente” sobre o mundo, mas “como é o mundo
daquela pessoa”. Pois, é nesse mundo vivido que a pessoa – mesmo o cientista –
se constrói, vive e faz suas escolhas.
- Referência: HUSSERL, Edmund.
Tierra no se mueve. Traducción y notas de Agustín Serrano de Haro. 2ª ed.
Madrid: Editorial Complutense, 2006.
*Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo
Filósofo. Mestre e Doutor em
Filosofia. Escritor. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e
direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris
Causa”. Autor da obra: “Introdução à Filosofia Clínica”. Editora
Vozes/Petrópolis/RJ. 2021.
Teresópolis/RJ
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