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Visão de mundo e representação*

Vivemos num tempo de crise. Todavia, a crise de nosso tempo não tem quatro anos, nem onze, nem vinte e três ou sessenta: tem quatro séculos. Consideramos a crise deste momento mais séria e mais urgente que muitas outras não porque ela seja realmente mais séria e mais urgente, mas porque ela é 𝘯𝘰𝘴𝘴𝘢.

A nossa crise é a conseqüência mais evidente de um processo de transformação da visão de mundo na Modernidade: antes a realidade, concebida como um Cosmos, multiplicava-se em diversos campos ontológicos – reunidos na compreensão humana por meio dos símbolos. Assim, todos os objetos do mundo eram ontologicamente complexos: participavam de vários campos do real, e por isso não podiam ser compreendidos a partir de uma única perspectiva. É esta a razão pela qual o ideal de sabedoria não era a super-especialização do intelecto, mas a síntese de vários campos numa única inteligência.

Contudo, os filósofos modernos – e os cientistas, e depois quase todas as pessoas – passaram a enxergar a realidade não mais como um Cosmos, como uma ordem constituída de diversas ontologias, mas como um Universo, com um único modo de existência – isto é, com uma ontologia unitária baseada num um fundacionalismo epistemológico quer seja materialista, quer seja idealista. Assim, cada objeto do mundo é compreendido a partir de uma perspectiva ontológica singular: cada ciência tem os seus objetos próprios, e esses objetos não devem cruzar as fronteiras entre os campos epistemológicos; todavia, está suposta, nessa visão de mundo, uma meta-epistemologia que determina, de uma vez, os limites da possibilidade de sua existência para todas as ciências legítimas. Por isso o ideal moderno de sabedoria corresponde, cada vez mais, ao da super-especialização, e não há lugar para o polímata: na Modernidade, acabamos por acreditar que quanto mais se conhece analiticamente um objeto, maior é o conhecimento da realidade objetiva unívoca ali presente.

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Assim, a Modernidade institui uma diferença 𝘤𝘭𝘢𝘳𝘢 𝘦 𝘥𝘪𝘴𝘵𝘪𝘯𝘵𝘢 entre a ciência natural, a política, a metafísica, a mística.

Isso é um equívoco. Esse equívoco conduz à incompreensão dos fenômenos culturais do nosso próprio tempo.

Por exemplo: qualquer ciência natural está fundamentada em intuições metafísicas indemonstráveis; possui em seu núcleo elementos místicos que conferem aos seus seguidores um certo ethos; e suas teses estão intimamente ligadas, numa via de mão dupla, a ideologias políticas. Todavia, reina a idéia de que existe, por exemplo, uma Biologia separada da metafísica, da política e da mística. Ora, a idéia da Biologia como uma ciência com fronteiras epistemológicas bem determinadas é uma fantasia escolar. É uma idéia pueril.

Do mesmo modo, toda ideologia política possui uma dimensão filosófica, está ligada a uma perspectiva científica de compreensão do real e tem um substrato místico. Quem não percebe esses elementos numa ideologia – e analisa os fenômenos político-ideológicos a partir somente propaganda eleitoral, dos mecanismos legislativos e das circunstâncias econômicas – não é capaz de compreender de onde vem a força de uma liderança política carismática: "não é 𝘴𝘰𝘮𝘦𝘯𝘵𝘦 a economia, estúpido!".

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A crise do Brasil não tem a sua origem exatamente na política eleitoral – em Lula, em Bolsonaro, em qualquer grupo político organizado. Supor que a sua solução esteja numa vitória de um grupo político equivale a tentar curar uma enfermidade por meio da supressão de um sintoma – e de um sintoma meramente secundário. De fato, as circunstâncias eleitorais manifestam um processo que tem lugar em regiões muito mais profundas.

É justamente nesse sentido que Mário Ferreira dos Santos dizia, em "Filosofia da Crise" (1956), que:

"Uma vitória sobre a crise não pode realizar-se dentro do campo da síncrise, porque mecânica, mas a partir de uma união que só transcendentalmente se pode obter, ou seja: pela atualização de uma forma que corresponda aos mais profundos conteúdos da alma humana. As soluções políticas, ou apenas filosóficas, não abrirão caminhos para um novo ressurgir, mas não se pode negar que cooperam, predisponentemente, para o surto do que é mais profundo. Uma vitória sobre a crise só pode dar-se para o homem quando ele realiza o transcendental, quando ele o acha; enquanto não o achar, permanecerá, de qualquer forma, imerso na crise, apesar das universalidades coativas, que são apenas síncrises que não resolvem os problemas - e preparam o seu agravamento posterior. Não encontraremos nenhuma solução se considerarmos o todo apenas uma soma das partes. É preciso compreender o Todo como uma transcendência das partes, e que o múltiplo se reúna no Um pela síntese dos dois extremos de ser, em suas modalidades arquetípicas. A harmonização entre o Múltiplo e o Um, ideal máximo da filosofia, precisa ser realizado - não somente no campo da especulação, mas também no campo concreto da vida social. Esse é um ideal de concreção. Resta saber apenas se podemos alimentar esse ideal, e se há possibilidades de realizarmos essa concreção. Não há vitória sobre a crise sem atingir esse ponto eminentemente."

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A nossa crise não tem quatro anos, não tem quarenta: tem quatrocentos. É uma crise de natureza metafísica. O bolsonarismo, o lulismo, o liberalismo, o socialismo, o nazismo, o fascismo não são a sua causa: são seus sintomas. A sua causa está na ascensão de um monismo ontológico que nos faz abandonar o conhecimento de uma pluralidade de campos do real; está na conseqüente exigência da super-especialização em detrimento da visão da complexidade; está na ascensão de um humanismo predatório que reduz tudo (inclusive o próprio homem) à condição de recurso; está na interdição do diálogo do homem com as coisas e com os animais, está na impossibilidade de uma espécie de parlamento de todos os seres – de 𝘵𝘰𝘥𝘰𝘴 os seres. A causa profunda da nossa crise está, enfim, na nossa visão reduzida a respeito do que de algum modo existe: está na cegueira – produzida pela filosofia moderna e transmitida por meio da escolarização científica – diante da riqueza simbólica de tudo o que há.

A saída da crise não está, absolutamente não está!, no resultado eleitoral. A nossa crise somente poderá ser superada se pudermos transformar o nosso olhar – isto é: se pudermos transmutar as categorias metafísicas com que pensamos e agimos no mundo, se pudermos receber como interlocutores e dar voz a tudo o que há, a tudo o que busca comunicar-se conosco a todo momento. Em suma: o problema não está no processo eleitoral, não está no nosso adversário político, não está no 𝘰𝘶𝘵𝘳𝘰. O nosso verdadeiro problema está dentro de nós: 𝘯ó𝘴 𝘴𝘰𝘮𝘰𝘴 𝘢 𝘯𝘰𝘴𝘴𝘢 𝘱𝘳ó𝘱𝘳𝘪𝘢 𝘤𝘳𝘪𝘴𝘦.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Escritor. Musicista. Educador. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Rio de Janeiro(?)

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