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O que é terapia?*

 

Qual a diferença de um conselho de um amigo para uma abordagem terapêutica?

Pode-se definir a terapia por um processo de apreensão e compreensão do outro além daquilo que ele apresenta. “Além” como? Toda metodologia terapêutica procura apreender e compreender o que o outro expressa em uma linguagem não-comum ou através da linguagem comum chegar a modelos de compreensão que o próprio indivíduo que se expressa não conhece desta maneira.

No diálogo entre amigos, quem ouve também tem categorias próprias de entendimento, que incluem seus próprios pré-juízos, noções, valores etc. Tenta ver na expressividade do amigo uma forma de atuar através de suas próprias categorias de entendimento. Se um amigo está reclamando da relação de trabalho com sua empresa, e o que ouve tem uma noção de que sempre os empresários e empresas exploram seus empregados, vai acabar dando conselhos nesta linha e tentará influenciar seu amigo através de suas próprias expectativas, tendências e pré-juízos. Ele não pode ir além disso, até porque a relação de amizade é mais ou menos isso: conselhos, abordagens para encorajar o outro amigo, “abrir” seus olhos, mas tudo através dos pré-juízos do amigo que escuta.

A terapia vai além disso. E aí chegamos no “além”. Como? De várias formas e metodologias, mas penso que todas tentam “ver” algo que não está completamente manifesto, que não está totalmente na ordem do ordinário e óbvio. E para isso tentam usar de outras categorias que não a da própria pessoa, no caso, do terapeuta. Qualquer terapeuta que utilizasse de seus próprios critérios pessoais e subjetivos para realizar um processo terapêutico, estaria, de alguma forma, saindo do eixo terapêutico.

Quando um terapeuta escuta o outro, tenta dar “vida” ao fenômeno que está além daquilo que aparece. E aqui os pares aparência/real ou representação/fenômeno aparecem fortes como uma dicotomia entre estes. Freud via nos comportamentos algo além deles, tendo na vida social e nas “engrenagens” da psiquê os elementos fundamentais do “problema”. Assim, penso que todas as terapias, dependendo de sua metodologia, buscam a compreensão do que aparece naquilo que não aparece diretamente ou naquilo que está subjacente como apoio de efetivação ao que aparece. Do fenômeno como algo “automático” ou habitual e mais “superficial”, ao subconsciente até o inconsciente profundo, muitos níveis de compreensão tentam diferentes terapias.

E aí entra um aspecto perigoso nas terapias, pois se conseguem efetivar sua compreensão do que não está diretamente presente na fala do outro, acabam por terem um “poder” que não está naquele que se expressa, mas está naquele que escuta. A validade social de “especialista” pode dar ao terapeuta um poder ímpar sobre o próprio conhecimento do outro sobre si mesmo. E aí vem a pergunta de como deve se comportar o terapeuta em relação a este saber-poder investido por sua profissão.

Também aí pode depender da metodologia e do próprio terapeuta e sua consciência do “ser terapeuta”. Há metodologias que “prendem” o outro por muito tempo, anos inclusive. Outras, que são um pouco mais rápidas e outras que dependem da interação entre quem faz a terapia e seu terapeuta. Aqui também há níveis de interação/metodologia/consciência do seu “ser terapeuta” que ampliam o espectro de possibilidades.

Dentro deste quadro de saber-poder, Carl Rogers, na década de 60, foi pioneiro ao transferir o controle e importância da interação terapêutica para o “paciente”, solução revolucionária na época onde quem “mandava” na terapia era o terapeuta e seu saber-poder.

Mas independente de metodologia, penso que toda terapia deve “entregar” à pessoa que faz a terapia, o máximo possível de compreensão dela mesma, porém sob outra perspectiva. Senão, para que se faz terapia? Seria melhor ir a um amigo e ouvir os conselhos que já sabe como serão. E aí é que o processo terapêutico pode ser – e normalmente é – duro, pesado, desconfortável, pois aquilo que o terapeuta pode nos mostrar de nós mesmos nem sempre é o que queríamos saber ou ouvir e algumas vezes nem sequer pensamos sobre isso desta maneira. Entendo, por isso, que para fazer terapia se requer certa estrutura interna, e que é mais confortável e fácil ouvir os conselhos dos amigos.

Como o terapeuta vai levar o processo terapêutico é outra questão. Pode ele, por ter “informações” sobre o outro que o outro não tem, pelo uso da metodologia que utiliza, “prender” o outro em uma trama onde este deverá sempre ir à terapia para saber mais de si mesmo. Ou pode ser que o processo terapêutico seja mais libertador e “mostre” ao outro aquilo que o terapeuta está “vendo” e compreendendo dele. No entanto, há pessoas que não são tão alimentadas pelo “conhecimento” e que se o processo terapêutico levá-la a um estado de bem-estar, mesmo que ela não esteja completamente consciente do porquê, acaba por sentir-se melhor e sair da terapia. Novamente, há graus aqui, dependendo de novo da metodologia e do “ser terapeuta” do terapeuta.

Pode ser que pessoas gastem seu tempo e dinheiro em terapia só para reforçarem aquilo que já pensam de si ou do mundo ou de seja o que for e acabam fazendo em si mesmo sua “própria” terapia ou também pessoas que querem exatamente aquilo que não conseguem compreender de si mesmo no dia a dia e nem com os conselhos de amigos ou familiares.

Mas uma coisa é certa, toda terapia vê e compreende o outro naquilo que não está completamente evidente em sua fala e é essa a riqueza do processo terapêutico. Se comparamos uma terapia com um processo pedagógico de ensino/aprendizagem, podemos dizer que nos esforçamos para aprender exatamente porque não sabemos algo daquilo que estamos estudando, no caso das terapias, nós mesmos. E, neste sentido, somente um profissional terapêutico pode jogar luz naquela parte de nosso “terreno” onde nossa luz não chega ainda. Redefinindo o ditado de Delfos conheça-se a si mesmo, colocaria: conheça-se a si mesmo, mas não somente consigo mesmo.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Escritor. Palestrante. Professor. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”.

Málaga/Espanha

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