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Ciência e pensamento mágico*

 

Um pensamento mágico do homem de nosso tempo: a crença de que quando deixa de chamar certas coisas de "deuses", deixa de crer em deuses.

O homem do século XXI crê em deuses de modo tão intenso que nem percebe que crê: entende o objeto de sua crença como a própria realidade. Afirma professar um “ateísmo”, fruto de um “realismo”. Porém, não compreende que nem é ateu, nem realista: é um crente no sentido mais radical da palavra, e toma como “real” o que é uma construção social. De fato, o ateísmo não propõe um embate contra a crença nos deuses, mas contra uma palavra. Suprima-se a palavra “deus” – e o ateu adere prontamente a qualquer credo. Renomeia-se o deus, mudam-se os rituais de culto, e o pensamento inteiro fantasia haver superado o mito em benefício da razão.

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O homem contemporâneo acredita substituir o pensamento mítico pelo pensamento racional. Ele não percebe que, em primeiro lugar, simplesmente renomeia antigos mitos; em segundo lugar, cria um novo panteão, não menos mitológico.

A liberdade, a justiça, a educação, um time de futebol, um popstar, a televisão, a ciência, o Estado, a democracia: com tudo isso o homem de nosso tempo pode manter uma relação religiosa, uma relação semelhante à que os homens de antanho mantinham com os seus deuses.

Os deuses deixam de ser chamados “deuses”, os rituais de adoração passam a ser chamados “ciência”, “entretenimento” ou “vida saudável”, em templos que são chamados por outros nomes – e o homem acredita haver superado o mito e alcançado a era da razão. Ele não percebe que é tão assombrado por deuses como os seus antepassados e que, como eles, permanece tomando a dimensão mitológica não como uma fantasia, mas como o próprio real.

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O homem de nosso tempo não entende que a razão e o mito não são pólos opostos do pensamento: há razão no mito e há mito na razão. Razão e mito constituem o nosso modo de ser. Afinal, por meio da razão humana participamos do Logos e podemos compreender o nosso caminho – o caminho num mundo cuja geografia é toda mitológica.

A mitologia – quer seja a antiga, quer seja a contemporânea – é a cartografia do pensamento.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Escritor. Palestrante. Musicista. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de "Doutor Honoris Causa". 

Rio de Janeiro/RJ

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