Um pensamento mágico do homem de nosso tempo: a crença de que quando deixa de chamar certas coisas de "deuses", deixa de crer em deuses.
O homem do século XXI crê em
deuses de modo tão intenso que nem percebe que crê: entende o objeto de sua
crença como a própria realidade. Afirma professar um “ateísmo”, fruto de um
“realismo”. Porém, não compreende que nem é ateu, nem realista: é um crente no
sentido mais radical da palavra, e toma como “real” o que é uma construção
social. De fato, o ateísmo não propõe um embate contra a crença nos deuses, mas
contra uma palavra. Suprima-se a palavra “deus” – e o ateu adere prontamente a
qualquer credo. Renomeia-se o deus, mudam-se os rituais de culto, e o
pensamento inteiro fantasia haver superado o mito em benefício da razão.
* * *
O homem contemporâneo acredita
substituir o pensamento mítico pelo pensamento racional. Ele não percebe que,
em primeiro lugar, simplesmente renomeia antigos mitos; em segundo lugar, cria
um novo panteão, não menos mitológico.
A liberdade, a justiça, a
educação, um time de futebol, um popstar, a televisão, a ciência, o Estado, a
democracia: com tudo isso o homem de nosso tempo pode manter uma relação
religiosa, uma relação semelhante à que os homens de antanho mantinham com os
seus deuses.
Os deuses deixam de ser chamados
“deuses”, os rituais de adoração passam a ser chamados “ciência”,
“entretenimento” ou “vida saudável”, em templos que são chamados por outros
nomes – e o homem acredita haver superado o mito e alcançado a era da razão. Ele
não percebe que é tão assombrado por deuses como os seus antepassados e que,
como eles, permanece tomando a dimensão mitológica não como uma fantasia, mas
como o próprio real.
* * *
O homem de nosso tempo não
entende que a razão e o mito não são pólos opostos do pensamento: há razão no
mito e há mito na razão. Razão e mito constituem o nosso modo de ser. Afinal,
por meio da razão humana participamos do Logos e podemos compreender o nosso
caminho – o caminho num mundo cuja geografia é toda mitológica.
A mitologia – quer seja a antiga,
quer seja a contemporânea – é a cartografia do pensamento.
*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Mestre e Doutor em
Filosofia. Escritor. Palestrante. Musicista. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de "Doutor Honoris Causa".
Rio de Janeiro/RJ
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