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A levitação de Clarice***

            Um dia Clarice liga dizendo que aceitou dar um depoimento no Museu da Imagem e do Som, mas fazia questão que Marina e eu fôssemos os entrevistadores. Eu a conheci em 1962 quando ela foi a Belo Horizonte lançar A maçã no escuro, na livraria Francisco Alves, e o gerente da livraria o professor Neif Safady convidou-me, eu ainda estudante de Letras, para fazer uma espécie de discurso de apresentação dela.  Lembro-me da primeira visão que tive daquela linda e consistente mulher no hall do Hotel Normandy. Estranhamente, tinha só meia dúzia de pessoas no lançamento. Depois disto fomos jantar num restaurante chinês e me lembro de que Ivan Ângelo estava conosco. E como seguíssemos durante a sobremesa falando de A maçã no escuro o garçom nos interrompeu constrangido explicando que a  maçã estava meio escura, mas não estava estragada.             O convite para aquela entrevista no MIS, que ocorreu um ano antes de sua morte, era um pacto de amizade. Essa relação afetiva j

Dores existenciais*

Vivemos numa época em que as dores são consideradas como ruins, uma dor é algo a ser debelado. Antigamente quando uma criança cortava o dedo, era tratada com Merthiolate e Mercúrio Cromo. Um dos desafios às mães era convencer a criança a se deixar medicar, pois eram medicamentos que causavam dor. Geralmente a mãe dizia: “Fica quieto, se dói, cura”.  Atualmente o medicamento já não causa mais dor, a fórmula foi alterada de maneira que a aplicação seja indolor. Quando não se tinha Merthiolate utilizava-se álcool ou até mesmo a velha e boa cachaça com arnica. Aqueles que passaram por estes tratamentos devem lembrar que era bastante doloroso a aplicação destes medicamentos sobre a ferida.  Era também uma época em que a criança tinha desde cedo uma participação forte na família, em muitos casos com tarefas como alimentar os animais, varrer o pátio, capinar a horta. As dificuldades da família eram partilhadas, não se “tapava o sol com a peneira” para que a criança não sofresse.

A poesia*

Por que tocas meu peito novamente? Chegas silenciosa, secreta, armada, como os guerreiros a uma cidade adormecida; queimas minha língua com teus lábios, polvo, e despertas os furores, os gozos, e esta angústia sem fim que acende o que toca e engendra em cada coisa uma avidez sombria. O mundo cede e se desmorona como metal no fogo. Entre minhas ruínas me levanto, só, desnudo, despojado, sobre a rocha imensa do silêncio, como um solitário combatente contra invisíveis hostes. Verdade abrasadora, para onde me impeles? Não quero tua verdade, tua insensata pergunta. Aonde vai esta luta estéril? Não é o homem criatura capaz de conter-te, avidez que só na sede se sacia, chama que todos os lábios consome, espírito que não vive em forma alguma mas faz arder todas as formas com um secreto fogo indestrutível. Mas insistes, lágrima escarnecida, e alças em mim teu império desolado. Sobes do mais profundo de mim, desde o centro

Fênix*

Na minha opinião o órgão do corpo que mais consegue se regenerar é o coração! Aos olhos da ciência isso não existe, mas qual o ser humano pode afirmar que nunca teve o coração partido? Quando você sente uma dor de cabeça é simples de tratar o problema, toma um remédio e logo passa, mas quando a dor é no coração... pode durar uma eternidade. Em todo caso isso depende de você! Ficar estagnado curtindo uma fossinha de vez em quando é inspirador e até poético, mas você tem de saber o momento de fazer renascer a fênix que existe em você! Na mitologia grega a fênix era uma ave com capacidade de suportar cargas muitas vezes maiores do que o seu corpo, conta-se que quando ela morria entrava em combustão, porém após algum tempo renascia das próprias cinzas! Acho lindo isso! Hoje em dia utiliza-se um termo emprestado da física para falar dessa capacidade de resistência, fala-se em resiliência. Resiliência é a capacidade que algumas matérias tem de sofrer deformações e voltar

As janelas*

Quem olha, de fora, através de uma janela aberta, não vê jamais tantas coisas quanto quem olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante do que uma janela iluminada por uma vela. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos interessante do que o que se passa atrás de uma vidraça. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida. Além das vagas do teto, percebo uma mulher madura, enrugada mesmo, pobre, sempre inclinada sobre qualquer coisa e que nunca sai de casa. Por seu rosto, por seus vestidos, por seus gestos, por quase nada eu refaço a história dessa mulher, ou antes, sua legenda e, às vezes, conto a mim mesmo, chorando, essa história. Se tivesse sido um pobre velho, eu, também, refaria a dele, facilmente. E me deito orgulhoso de ter vivido e sofrido nos outros como se fosse em mim mesmo. Talvez vocês me dirão: “Estás certo de que esta fábula seja verdadeira?” Que i

Não me pergunte que eu respondo*

Nascemos. E a partir deste momento mágico, inicia nosso treinamento para questionar e responder. Pais e avós orgulham-se da inteligência de seus bebês quando estes, questionados, apontam rapidamente, sem hesitação, o narizinho e a orelhinha. Mais tarde vem a escola ensinando respostas mais difíceis: “Qual a capital da França?”, “Por que a lei da gravidade faz a maçã cair?”. E, mesmo quando adultos, nosso conhecimento continua sendo testado em provas para faculdades e concursos. Assim, lenta e gradativamente, somos induzidos a acreditar que a vida acontece e se explica através de perguntas e que sempre existirá uma resposta correta.  Dependendo de nosso desempenho, receberemos um conceito e seremos aprovados ou não. Mas a vida é bem mais que isso. Algumas perguntas terão resposta.  Outras vão produzir mais de uma resposta, e todas estarão corretas. E talvez algumas perguntas sejam irrespondíveis. É preciso saber conviver com esta complexidade. E é justamente aí que al

Uma Arte*

Não é tão difícil dominar a arte de perder; tanta coisa parece preenchida pela intenção de ser perdida que sua perda não é nenhum desastre. Perca alguma coisa todo dia. Aceite a novela das chaves perdidas, a hora desperdiçada, aprender a arte de perder não é nada. Exercite-se perdendo mais, mais rápido: lugares, e nomes e... para onde mesmo você ia viajar? Nenhum desastre... Perdi o relógio de minha mãe. E olha, minha última e minha penúltima casas ficaram para trás. Não é difícil dominar a arte de perder. Perdi duas cidades, adoráveis. E, mais ainda, alguns domínios, propriedades, dois rios, um continente. Sinto sua falta, mas não foi um desastre. - Até mesmo perder você (a voz gozada, o gesto que eu amava) eu não posso mentir. É claro que não é tão difícil dominar a arte de perder apesar de parecer (pode Escrever!) desastre. *Elisabeth Bishop

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