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Leituras clínicas*

  “O ponto de vista Partilhante, ao se deixar acessar pelos termos agendados, reivindica um leitor de raridades. O fenômeno terapia aproxima papéis existenciais da clínica com a arqueologia. Sua estética cuidadora, a descobrir e proteger inéditos, mescla saberes para acolher as linguagens da singularidade.”                                                                              Hélio Strassburger                                     O trecho citado está na obra “A palavra fora de si” do professor Hélio e especificamente no texto dedicado “As linguagens da terapia”. Aqui é essencial dar-se conta de que o veículo que nos faz percorrer caminhos dentro do espaço clínico é a linguagem, e nesse sentido, é papel do cuidador dar espaço de passagem e fornecer proteção às cenas que se revelam sessão após sessão, acolhendo o conteúdo. Durante esses 4 anos de clínica, atendi algumas mulheres (sim, hoje falarei delas). Sou grata pela confiança que depositam no processo clínico, sei dos meus

Fiz cinquenta anos, e agora?*

A medicina diz que começamos a envelhecer a partir dos 30 anos de idade. Comigo não foi bem assim. Comecei a envelhecer quando meu filho nasceu. Por coincidência tinha justamente trinta anos. Achava que como pai tinha responsabilidade financeira e gastava todos meus dias trabalhando para sustentar a família. Chegava em casa tarde da noite, acabado de tanto cansaço, mal conseguindo aproveitar o calor de um lar. Voltei a ficar jovem quando nasceu meu neto.    Brincamos juntos todas as manhãs na pracinha do bairro e me renovo todo dia.     Comecei a envelhecer quando me preocupei em esconder os primeiros fios de cabelo branco. Rejuvenesci quando deixei os grisalhos crescerem natural e desalinhadamente por cima das orelhas. Sentia-me um velho trabalhando sem prazer, amargurado, reclamando e só pensando no dia da minha aposentadoria. Depois de aposentado, virei criança. Esta conversa de envelhecer depois dos trinta começava a cair por terra. Pensava que depois de ficar viúvo, a vida não

A noção de mundo: uma breve contribuição a partir de Heidegger*

Quando, a partir da filosofia clínica, falamos sobre compreender o “mundo” do outro, tal afirmação pode soar como um termo equívoco. Trata-se do mundo enquanto representação de mundo, inspirada na noção de “homem como medida de todas as coisas”, de Protágoras de Abdera, atualizada em Arthur Schopenhauer ao afirmar que “o mundo é minha representação”. Isto é mostrado claramente nos antigos Cadernos utilizados na formação de filósofos clínicos, sobretudo na segunda metade dos anos de 1990. Mas, a fim de contribuir para o entendimento da noção de mundo do partilhante a qual o filósofo clínico busca acessar via recíproca de inversão ao longo das sessões, podemos recorrer ao pensamento de Martin Heidegger. O filósofo de Messkirch pautou toda sua vida a pensar a “questão do ser”. Uma noção de “ser” que, aliás, é diferente de seus predecessores dos últimos vinte e cinco séculos. Para Heidegger, todos os entes são precedidos pelo ser. Partindo de um vice-conceito – assumindo-o como sim

Anotações e Reflexões de um Filósofo Clínico*

Amigos, não basta saber ler para compreender um texto. Para absorvê-lo mais ou menos inteiramente, é preciso conhecer o campo de sentidos em que foi escrito.  Isto é: o domínio da língua não se esgota na leitura e na escrita proficiente. A língua é composta por muitas linguagens que se inscrevem em diferentes regiões hermenêuticas. Ao transitarmos por um texto escrito numa região hermenêutica desconhecida, encontramo-nos numa situação de analfabetismo simbólico; não o interpretamos corretamente porque desconhecemos os complexos nos quais os seus símbolos se relacionam. Estamos como que diante de um texto escrito noutra língua, uma língua ignorada. Todavia – e aí está a tragédia –, acreditamos compreender o lá está colocado, porque sabemos o significado ordinário daquelas palavras. O exercício intelectual mais difícil é o reconhecimento da própria ignorância: se somos capazes de ler todas as palavras de um texto, como podemos chegar à conclusão de que talvez não o compreendamos? E

Ler e escrever como terapia*

  Os caminhos para se chegar a uma melhor condição de bem-estar subjetivo são tão diversos quantos são os indivíduos. Para alguns, conversar semanalmente com o terapeuta é o melhor dos caminhos. Para outros, a alma sorri mesmo é com uma boa conversa jogada fora junto daqueles amigos sinceros que dizem coisas bonitas com a mesma naturalidade com que convidam a refletir sobre as falhas e fissuras no seu jeito de ser e existir. Tão bem faz, igualmente, para algumas pessoas, a prática da fé e da espiritualidade, ou da solidão momentânea, para ficar de encontro com seus próprios pensamentos, com seus próprios sentimentos.  A lista é infindável: brincar com os netinhos, tomar chimarrão na praça, paquerar ao pôr do sol, cozinhar para o amor da sua vida, cuidar de plantas e jardins… Tudo isso faz bem, gera prazer e satisfação em viver, para muitas pessoas. Para um sem número de sujeitos, porém, existe um método que historicamente se estabeleceu como charmoso para retratar das dores e alegria

A fundamentação, a contribuição e os equívocos*

A filosofia clínica é um método terapêutico. A inquietação que levou Lúcio Packter a sistematizá-la ocorreu diante de sua necessidade de auxiliar pessoas em suas dores, conflitos e demais demandas existenciais. O construto metodológico da clínica filosófica foi elaborado na medida em que auxiliava Packter a compreender as pessoas as quais atendia e a encontrar as melhores maneiras de ajudá-las. Desde então, não foi a teoria baseada em profundas reflexões sobre quem é o ser humano que fundamentava a prática; foi a prática – em diálogo contínuo com as teorias da tradição filosófica – que deu subsídios para a construção da abordagem posteriormente denominada filosofia clínica. Diante disso, há três aspectos a serem levados em conta quando se trata de pensar o âmbito teórico da filosofia clínica. O primeiro deles diz respeito a compreender os fundamentos dessa sistematização. Em seguida, consideramos os acréscimos posteriores com a finalidade de aprofundar o método. Por fim, cabe refleti

Resenha do livro de Miguel Angelo Caruzo, “Introdução à Filosofia Clínica”. Editora Vozes. 2021. Petrópolis/RJ.*

           As duzentas e duas páginas do livro Introdução à Filosofia Clínica do Professor Miguel Angelo Caruzo, publicado recentemente pela Editora Vozes de Petrópolis, RJ, desencadearam um processo de leituras que culminou em três momentos diversos de escrita, que justificam o título dado a cada seção desta “resenha”.           Primeira leitura : De trás pra frente, salteada e incompleta           Sem ordem linear, a leitura começou do posfácio, veio para a conclusão, depois considerações iniciais, apresentação.   Folheando as páginas, sem compromisso, chamaram a atenção os títulos: Planejando a clínica , Analise o caminho da realização , Lidando com ruínas . O primeiro destaque a ser feito: títulos sugestivos, originais e atraentes ao leitor, já conhecedor, ou não, do método terapêutico da filosofia clínica, tema central da obra. Foi, então, que veio o primeiro momento de escrita. Julgando ser a resenha, escrevi, numa espécie de brain storm :            Inicio esta resenha pe

Qual a abrangência terapêutica da Filosofia Clínica?*

  Essa pergunta vem atrelada, às vezes, a outra pergunta. Qual é a fundamentação filosófica da Filosofia Clínica? Vamos começar com outra pergunta? É possível que um pensador ou uma linha de pensamento (teoria) consiga abranger toda manifestação plural do fenômeno humano? Considerando o fenômeno humano e suas manifestações tão plurais, múltiplas ou diversas, como considerar que uma linha teórica ou um autor, por mais abrangente que seja sua visão, possa dar conta do fenômeno humano em sua totalidade? A não ser que não consideremos o fenômeno humano plural e diverso! Mas, se o considerarmos, por mais abrangente que seja uma perspectiva sobre o fenômeno humano, advinda de um autor ou de uma linha teórica, ela é limitada. Não só pela busca de referências que ele possa buscar, mas pela sua própria perspectiva selecionadora do que buscar e do que deixar de fora. A Filosofia Clínica não fundamenta seu método em um autor ou em uma linha teórica filosófica. Fundamenta, sim, no estudo da

O que é a Filosofia Clínica?***

A Filosofia Clínica, em uma nova abordagem terapêutica, é a filosofia acadêmica adaptada à prática clínica, à terapia. Não trabalha com critérios médicos, com remédios ou com tipologias na construção de uma proposta terapêutica cujo objeto é buscar o bem-estar do ser humano.  O instrumental da Filosofia Clínica divide-se em três partes: os Exames Categoriais, a Estrutura de Pensamento e os Submodos. Nos Exames Categoriais, primeiro momento da clínica, através da historicidade, o filósofo clínico situa existencialmente a pessoa colhendo todas as informações de sua vida, desde as suas recordações mais remotas, até as informações de suas vivências mais atuais. O material colhido, na história da pessoa atendida - que em Filosofia Clínica é chamada de partilhante, justamente pela condição de ser alguém com quem o filósofo compartilha momentos da existência -, é a base para o desenvolvimento do processo terapêutico. A partir desses dados, num segundo momento, são verificados os tópicos

Anotações e Reflexões de um Filósofo Clínico*

Cada pensamento que emanamos é como uma semente plantada no solo da nossa própria alma. E cada uma dessas sementes plantadas ora com consciência e tantas outras vezes de forma acidental ou descuidada, só pode crescer e prosperar nas nossas vidas caso tomemos a decisão de cultivá-las obrigatoriamente adotando todos os cuidados necessários até o momento de colher o seu fruto.    E, com o tempo, na medida em que vamos existindo a cada dia persiste a oportunidade de aprendermos um pouco mais sobre nós mesmos, sobre as nossas atitudes, sobre as nossas sensações, sobre os nossos sentimentos, sobre o que devemos superar e sobre o que devemos manter e cuidar para que floresça cada vez mais... Toda alma é um jardim florido e com um ecossistema riquíssimo de memórias, de emoções e de intencionalidades, sobretudo. E é quando tomamos coragem para decidir nos conhecer melhor a cada dia, é que passamos a prosperar em autoconhecimento e com isso, despertamos consciência cada vez mais até ter cond

A dança dos olhos*

  “Não pedes nada menos que o impossível.”                                         Paul Valéry   Filamentos dançantes, o tempo movente dessas imagens não significa que, por não ter nenhum valor artístico, não pode ser igualmente original. Nasceram alguns dias atrás, bem mais próximo do que se possa imaginar. Está dentro; do ângulo mais distante da projeção das imagens, o gel baila, desloca-se feito uma bailarina que passa a mover meus pensamentos, uma projeção de estranhamento. Toma conta da alma, dos sentidos, é uma duplicidade dentro do corpo, do imaginário, uma não existência dentro do existir. Todas as possibilidades me lembram do filme que ficou na juventude, um esquecimento que volta a mover os sentidos. No primeiro instante vem um susto do tamanho da pandemia, o lado indefeso da mente, a solidão do pensamento e, uma única certeza, o estar vivo. Depois vem a busca de informações, procurar o especialista, os que já convivem com essa fantasmagoria, neste caso, mais parece véu

Descrituras*

  "(...) Deram-me esta bela gravata... como um presente de desaniversário! (...) o que é um presente de desaniversário ? – Um presente oferecido quando não é seu aniversário, naturalmente.”                                                                             Lewis Carroll   Uma redação se faz página cotidiana na vida de qualquer pessoa, quer ela entenda ou não. Algo que restaria esquecido, não fora a ousadia semiótica a tentar decifrar essa trama de códigos imperfeitos. Por esse esboço a lógica descritura se incompleta para prosseguir inconclusa, aberta, viva. Nem sempre se escolhe escrever, muitas vezes são as palavras a escolher você para dizer suas coisas. Conteúdos de rascunho, ilação, percepção extemporânea de ideias, reflexão. Aproximações com a zona interdita das margens de cada um. O tempo aprecia conceder eficácia de tradução aos traços persistentes. O sujeito prisioneiro dessa armadilha conceitual experimenta liberdades nem sempre possíveis de mencionar na

Bom dia! Hoje tem Filosofia Clínica e Literatura! Bem vindos!

 

Somos instantes**

Aconteceu num instante, foi sem querer, não havia planejamento ou expectativa alguma. Ele a convidou para passarem juntos a noite em sua casa e ela aceitou. Só por hoje, respondeu timidamente. Nem havia clareado o dia, ela saiu para o trabalho, mal tiveram tempo de se despedir. Foi tão maravilhosa a companhia que ele a convidou novamente no sábado. Só por hoje foi como confirmou sua vinda. Muitas outras vindas aconteceram, mas a senha era sempre a mesma: só por hoje (SPH), jamais perguntava ou confirmava nada sobre o amanhã. Não necessitava dele para nada, mas era parceira para tudo. Era livre e assim o deixava. Numa destas noites frias do inverno gaúcho, enquanto se aqueciam em abraços, sussurrou em seu ouvido esquerdo que estava apaixonada. Com voz rouca e melosa frisou que “estava” apaixonada, não que “era” apaixonada. Especialmente naquela noite estava se sentindo muito apaixonada. Muitas outras declarações, agora mútuas, aconteceram seguidas da já bem conhecida senha “só por hoj

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