A filosofia clínica é um método terapêutico. A inquietação que levou Lúcio Packter a sistematizá-la ocorreu diante de sua necessidade de auxiliar pessoas em suas dores, conflitos e demais demandas existenciais. O construto metodológico da clínica filosófica foi elaborado na medida em que auxiliava Packter a compreender as pessoas as quais atendia e a encontrar as melhores maneiras de ajudá-las. Desde então, não foi a teoria baseada em profundas reflexões sobre quem é o ser humano que fundamentava a prática; foi a prática – em diálogo contínuo com as teorias da tradição filosófica – que deu subsídios para a construção da abordagem posteriormente denominada filosofia clínica.
Diante disso, há três aspectos a serem
levados em conta quando se trata de pensar o âmbito teórico da filosofia
clínica. O primeiro deles diz respeito a compreender os fundamentos dessa
sistematização. Em seguida, consideramos os acréscimos posteriores com a
finalidade de aprofundar o método. Por fim, cabe refletir sobre alguns enganos
ou equívocos dos que buscam fundamentá-la.
Quanto ao fundamento, a filosofia
clínica deve ser entendida como aquilo para a qual foi pensada: uma abordagem
terapêutica, um método, cujas bases são filosóficas. Lúcio Packter leu muitos
filósofos dos vinte e cinco séculos de tradição do pensamento e foi elaborando
as bases de sua terapia filosófica. Cada autor legou pressupostos (como, por
exemplo, a ideia de representação de mundo e da crítica aos critérios de
normalidade e patologia) e possibilidades de compreensão de contexto (exames
categoriais), modos de ser (estrutura de pensamento) e agir (submodos) de cada
indivíduo.
É necessário compreender que do mesmo
modo em que em todo construto filosófico os termos não são compreendidos a priori, mas dentro da obra do filósofo
que a apresenta, o arcabouço conceitual da filosofia clínica deve ser
compreendido a partir dela própria e não dos filósofos que a inspiraram. Este
recurso pode auxiliar no processo de compreensão, mas levando em conta a
adaptação – algumas radicalmente modificadas – para a prática de consultório.
Portanto, para entender a fundamentação, não se pesquisa os filósofos
recorridos por Packter; a busca deve basear-se nas primeiras referências da
construção desses fundamentos como, por exemplo, nos Cadernos dos anos de 1990.
Outro ponto importante diz respeito aos
aprofundamentos da filosofia clínica. Embora a clínica filosófica tenha sido
sistematizada e fundamentada, ela jamais será uma proposta acabada. Assim,
cabem os infindáveis aperfeiçoamentos a fim de beneficiar tanto os filósofos
clínicos quanto, e sobretudo, os partilhantes. A filosofia clínica não é uma
abordagem terapêutica fechada – assim como nenhuma outra está concluída – e,
por isso, deve se manter aberta aos devidos e necessários aprofundamentos.
Nesse sentido, as obras filosóficas, literárias, teóricas de modo geral, podem
auxiliar nesse aspecto. Não para fundamentar, no sentido de dizer qual perspectiva
filosófica embasa alguma categoria, tópico ou submodo (pois isto já foi
realizado), mas para avançar nas pesquisas, esclarecimentos, viabilizações de
novos aprofundamentos etc.
Cabe ressaltar que um método cuja
finalidade é prática, passa a ser beneficiado na medida em que tais trabalhos
consideram o “chão de fábrica” do consultório. O próprio Lúcio dizia que
precisou abrir mão de teorias que lhe eram caras por não serem efetivas na
prática. Quanto mais teórico e “universalizador” um pesquisador da filosofia clínica
se torna, mais se põe em risco de se distanciar do olhar que enxerga o outro em
sua singularidade.
A atividade supramencionada, a saber, a
dos aprofundamentos, pode ser confundida com fundamentação. Como dizer de onde
vieram categorias, tópicos e submodos por meio de filósofos que pensamos ser as
bases de tais elaborações se já temos, por exemplo, os Cadernos a dizer onde
estão essas fontes e de que modo foram amplamente modificadas para fins de
adaptação ao trabalho de consultório? A propósito, ninguém entenderá os
conceitos utilizados na filosofia clínica se forem ler diretamente os conceitos
utilizados e elaborados pelos filósofos dos quais foram inspirados. Pois, tanto
o termo conceitual do filósofo em questão quanto o utilizado pela filosofia
clínica possuem compreensões, usos e um arcabouços estruturais próprios e, por
vezes, bastante distintos.
Além disso, a ênfase na fundamentação
teórica sem fins na prática beira ao risco de construirmos uma (má) conjectura
a respeito de algo que pouco ou nada servirá para o trabalho do filósofo
clínico. Por mais atraente, convidativa e criativa que seja uma formulação
teórica na filosofia clínica, se não viabilizar a atividade do filósofo clínico
em consultório, empresas ou instituições diversas, provavelmente se terá uma
tentativa de fazer (uma má) filosofia.
Uma ênfase teórica que não privilegia a
finalidade para a qual a clínica filosófica foi elaborada pode beirar a uma
tentativa de elaboração universalizada, por vezes, normativa, arriscando a
novidade desse novo paradigma do mundo das terapias, a saber: a irrevogável
noção de singularidade. Cabe,
portanto, cuidar para não se “florear” muito a filosofia clínica esquecendo-se
de quão estéril podem ser as conjecturas e construções puramente teóricas.
Quando tais riscos são observados, é
possível entender a fundamentação da filosofia clínica recorrendo às fontes e
suas devidas adaptações; colaborar com novos aprofundamentos estabelecendo
diálogos com filósofos e teorias que visam aperfeiçoar a prática clínica; e
cuidar para não resvalar em belíssimas elaborações completamente inúteis no
processo de auxiliar os partilhantes em suas questões existenciais.
*Prof Dr. Miguel Angelo Caruzo
Filósofo. Escritor. Filósofo Clínico. Professor
Titular na Casa da Filosofia Clínica. Autor da "Introdução à Filosofia Clínica". Ed. Vozes. Petrópolis/RJ. 2021.
Teresópolis/RJ
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