As bibliotecas não são simplesmente lugares em que podemos ler livros.
Cada biblioteca é uma praça de
resistência.
Um dos últimos lugares em que
qualquer pessoa pode entrar livremente e ter acesso a bens de alto valor
econômico - e ninguém espera que se gaste nem mesmo um centavo por isso.
* * *
Em Fahrenheit 451, Ray Bradbury
descreve uma distopia em que os livros são proibidos. Lá, as telas, a
televisão, o entretenimento toma todo o lugar da cultura literária.
Conseqüentemente, a população se torna mansa e estúpida, e passa a odiar os
livros como se fossem “armas carregadas”:
"- Ah - Beatty inclinou-se,
varando a rala névoa de fumaça de seu cachimbo. - Nada mais simples e fácil de
explicar! Com a escola formando mais corredores, saltadores, fundistas,
remendadores, agarradores, detetives, aviadores e nadadores em lugar de
examinadores, críticos, conhecedores e criadores imaginativos, a palavra
'intelectual', é claro, tornou-se o palavrão que merecia ser. Sempre se teme o
que não é familiar. Por certo você se lembra do menino de sua sala na escola
que era excepcionalmente 'brilhante', era quem sempre recitava e dava respostas
enquanto os outros ficavam sentados com cara de cretinos, odiando-o. E não era
esse sabichão que vocês pegavam para cristo depois da aula? Claro que era.
Todos devemos ser iguais. Nem todos nasceram livres e iguais, como diz a
Constituição, mas todos se 'fizeram' iguais. Cada homem é a imagem de seu
semelhante e, com isso, todos ficam contentes, pois não há nenhuma montanha que
os diminua, contra a qual se avaliar. Isso mesmo! Um livro é uma arma carregada
na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma brecha no espírito
do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem que lê? Eu? Eu não tenho
estômago para eles, nem por um minuto. E assim, quando as casas finalmente se
tornaram à prova de fogo, no mundo inteiro - você estava certo em sua suposição
na noite passada -, já não havia mais necessidade de bombeiros para os velhos
fins. Eles receberam uma nova missão, a guarda de nossa paz de espírito, a
eliminação do nosso compreensível e legítimo sentimento de inferioridade:
censores, juízes e carrascos oficiais. Eis o nosso papel, Montag, o seu e o
meu." (R. Brad-bury. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo:
Mediafashion, 2016. Pp. 59-60)
De fato: os livros têm um
potencial agressor. Eles agridem o autoritarismo, o sadismo, a ignorância; eles
agridem a credulidade e a resignação das pessoas.
Um leitor de livros
inevitavelmente desconfia do poder político, do poder econômico, da imprensa,
de gurus. Ao mesmo tempo, é capaz de exercitar a humanidade quando tudo em
volta desumaniza.
* * *
No romance de Bradbury, as
pessoas, proibidas de ter livros, decoram as suas obras favoritas – elas
tornam-se livros, numa tentativa desesperada de salvar a cultura literária,
isto é: de salvar a humanidade no ser humano.
Nós não precisamos recorrer a esse artifício extremo. Ainda temos bibliotecas. Ainda temos livros. É preciso defendê-los da ameaça de nosso tempo – que não é a fogueira, mas a ignorância travestida de cultura popular.
*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Educador.
Musicista. Filósofo Clínico.
Teresópolis/RJ
Comentários
Postar um comentário