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Notas e percepções de leituras*

  “O ponto de vista Partilhante, ao se deixar acessar pelos termos agendados, reivindica um leitor de raridades. O fenômeno terapia aproxima papéis existenciais da clínica com a arqueologia. Sua estética cuidadora, a descobrir e proteger inéditos, mescla saberes para acolher as linguagens da singularidade.”                                                                                Hélio Strassburger                            O trecho citado está na obra “A palavra fora de si” publicada pela editora Multifoco/RJ em 2017, do professor Hélio e especificamente o texto dedicado “As linguagens da terapia”. Aqui é essencial dar-se conta de que o veículo que nos faz percorrer caminhos dentro do espaço clínico é a linguagem, e nesse sentido, é papel do cuidador dar espaço de passagem e fornecer proteção às cenas que se revelam sessão após sessão, acolhendo o conteúdo. Durante esses 4 anos de clínica, atendi algumas mulheres (sim, hoje falarei delas). Sou grata pela confiança que depo

Pensamento Fronteiriço no Assunto Imediato***

Dona Cida*, o que a trouxe aqui?          “Foi a dor de não ter podido mais cantar o meu samba depois que eu me casei. Essa dor sempre foi muito maior do que as dores dos partos e da perda recente que me tornou viúva e finalmente, feliz! Acho que foi isso que me trouxe aqui, porque como cristã não consigo superar a culpa que me tortura [...] por me sentir aliviada [...] com a morte do meu marido. E já falando sobre o meu querer, nessa altura da vida eu só quero voltar a cantar em paz...” Por favor, fale-me um pouco mais sobre isso…          “Bem, você tem unhas grandes na mão direita modeladas para o violão porque elas têm o formato de palhetas. E por eu saber reconhecer um violonista que o escolhi como meu terapeuta, logo depois da sua palestra lá na Universidade dos Idosos. Nunca me esqueço do que você falou sobre literatura como potencial expressivo da vida pela escrita e pela musicalidade, afirmando como exemplo a grandeza da ‘escrevivência’ da Conceição Evaristo como forma d

Uma metafísica dos refúgios*

  “Deram-me um corpo, só um! Para suportar calado, tantas almas desunidas, que esbarram umas nas outras.”               Murilo Mendes          Um íntimo estranhamento chega à superfície na forma de dizer desencontrado. O gesto inseguro, a voz trêmula, a lágrima bailarina, parecem traduzir a indefinição em curso dentro de si. Em nuanças de antigas vivências, a linguagem faz voltar o que parecia esquecido. Ao descrever invisibilidades seu olhar insinua um caminho às mil mensagens interditas. A contenção física não fora capaz de desarrumar o caos precursor, aliás, amarrar o corpo serviu para liberar a alma. O espanto inicial multiplica os acessos a essa nascente. Através das miragens, franjas e detalhes quase imperceptíveis, se descreve num parágrafo maldito. O movimento especulativo se disfarça de realidade para insinuar segredos. Demonstra-se em trajetos pelos labirintos de si mesmo. Assim uma alma exilada em um corpo refém, transcreve um sonho acordando. As dialéticas do inst

Nadadores*

                                         “nadar se tornara uma espécie de fuga.”                                                                  F. Scott (1929)                                                        O amor é promessa. Perene é a válvula poética, é adentrar às palavras no vagar dos sentidos ao imaginário. Amar as águas que te salvam do tédio é a existência em sua finitude. Flexão do corpo na curvatura dos braços, o movimento cadenciado, pernas no ritmo do esquecimento, a perenidade da vida, um navegar longe.   É o afastar-se das luzes da cidade sumida. O fantasma de um lugar, é ir perder no horizonte dos encontros, do abandono fortuito. A terra firme transparente em beleza, uma mulher deixada no continente. O mar aberto traga os sonhos. A devoção do corpo levado nas escadarias da igreja dos deuses no consolo das águas, os esquecidos que afogam suas mazelas da vida hão se ser esquecidos para toda eternidade.   O esquecimento do ódio, a negação da violência é a f

O preço de escrever*

Este é o artigo número 200 deste blog. Nunca imaginei que manteria essa atividade por tanto tempo com tamanho entusiasmo e regularidade. Começou como uma brincadeira e foi ficando. Antes de qualquer coisa, quero agradecer aos leitores que me acompanharam, criticaram, aconselharam e, especialmente, tiveram paciência comigo na riqueza e na pobreza dos textos. Preciso de vocês, mas também devo confessar algo que talvez não gostem de saber. Escrever é o verdadeiro prazer, ser lido é uma satisfação complementar. Jamais tive obrigação alguma de produzir textos. Escrevo porque gosto, sinto prazer, relaxo, me forço a pensar, desligo do cotidiano e no final, quando nasce o texto, quase sempre, sou possuído por um sentimento de arrebatamento. Em cada argumento que produzo, me dou o luxo de viajar com as ideias para qualquer lugar. Posso também ser quem eu quiser e, se me der vontade, utilizar minha caneta como uma arma potente e terrível, criticando, polemizando, elogiando, detonando, fazendo

Qual é a especialidade do filósofo clínico?*

  O filósofo clínico é especialista em singularidade. Toda pessoa que o procura é um caso inédito a ser acompanhado do zero. Ainda que acompanhe pessoas em alguma instituição, grupo ou região, as aparentes características em comum não direcionam o trabalho do terapeuta. Atendi, por exemplo, a pessoas de uma Igreja Católica em uma pequena cidade do interior do Rio de Janeiro. Embora os dogmas, a tradição e o objeto da fé fossem supostamente os mesmos, o modo de vivenciar a religião era único em cada pessoa. Algumas vivenciaram mais pela razão, outras, pelos valores, havia aquelas para as quais tocar as emoções era imprescindível etc. Além disso, se houvesse duas queixas iniciais para ter procurado a clínica parecidas, o que era de fato trabalhado e como as intervenções ocorriam jamais se repetiam. Nem mesmo os trabalhos em grupo podem fugir do pressuposto da singularidade, sob o risco de deixar de ser filosofia clínica. Considerar a singularidade em todo momento é desafiad

Revista da Casa da Filosofia Clínica Primavera 2022 - Ed. 02

 Revista Casa da Filosofia Clínica - Primavera 2022 [ LEIA AQUI ] Nessa edição de primavera, mais que conteúdos de qualidade para os estudos sobre o novo modelo de cuidado e atenção à vida, apresentamos uma contribuição para o desenvolvimento da percepção cuidadora diante desses novos tempos. LEIA E INSPIRE-SE! CLIQUE PARA LER

O que é ser saudável ?******

Se existisse isso de ser saudável e talvez a pessoa dissesse sempre aquilo mesmo que pensa, trabalharia em algo que tem a ver com ela, teria amizades por afinidade, faria amor com quem ama. Existisse mesmo a pessoa saudável e Deus estaria com ela, os pássaros viriam ter com ela nas janelas e as janelas se abririam para o mundo. As crianças teriam escola e cresceriam com esperança - que não seria mais uma utopia. Os velhos seriam então apenas velhos e os adolescentes teriam a descarga adequada para seus dez mil hormônios. Haveria ainda solidão, tristeza, medo, ansiedade, é claro, e por que não ? Mas apenas às vezes, e seriam desejáveis porque ensinariam. A pessoa ficaria triste porque ocasionalmente isso é parte da vida, mas não estaria costumeiramente triste. Existisse a pessoa de fato saudável e eu não precisaria escrever este artigo, não teríamos livros de auto-ajuda nem de hetero-ajuda, as escolas de psicologia virariam respeitáveis museus e os médicos tratariam de consertar s

"La razón poética" - Rosalía de Castro y María Zambrano de Arantxa Serantes

A obra " La razón poética - Rosalía de Castro e María Zambrano ", recentemente publicada pela Editora Literatura Abierta/Espanha, oferece um panorama de excelência sobre a vida e a relação dessas mulheres com sua época. Filósofas, poetas, pensadoras, além de seu tempo. Nesse belíssimo texto, Arantxa Serantes , doutora em Filosofia, escritora e pesquisadora extraordinária, compartilha sua pesquisa sobre Rosalía de Castro e María Zambrano ao público não especializado, oportunizando uma aproximação com a produção poética e filosófica Galega/Espanhola. O livro contou ainda com apresentação do Filósofo Clínico Hélio Strassburger.     Direção da Casa da Filosofia Clínica Porto Alegre/RS Primavera de 2022    

Prática em Filosofia Clínica*

“Nesse sentido, a nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de seu ser sujeito em ação.” – Hélio Strassburger em Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório . Ed. Sulina. Porto Alegre/2021.  Pode ser que muitos que não sejam terapeutas e leiam as linhas acima se perguntem, meio frustrados ou estupefatos pela afirmação feita, “Mas não é assim com qualquer terapia séria? Não é assim que todas fazem? Como poderia uma terapia ser diferente disso? Então, qual é a vantagem da filosofia clínica ao afirmar tudo isso?”   Vamos começar pelo maior contraste, já que, às vezes, o mais próximo é o mais difícil de enxergar as nuances. Hélio já c

Universal e singular***

  Sobre a moto, eles aproveitavam a deliciosa manhã de outono para apreciar a Rota não 66, porém a Estrada Real em Minas Gerais. Percepcionam curiosos. Seus colegas diziam: - A arte barroca é maravilhosa. Ponto. Como se “toda” arte barroca fosse bela para todos. Eles tentavam explicava a singularidade: - Nem todas as obras barrocas são belas. Podem ser para uns e não ser para outros. Em Tiradentes, um dos conjuntos arquitetônicos da arte barroca mais bem preservados do Brasil. “Irregular. Imperfeito. Exuberante. Nenhum estilo artístico e arquitetônico se encaixa com mais harmonia em Minas Gerais que o Barroco”. Muitos admiram e muitos rejeitam esta arte excêntrica. Concluíram que a compreensão da singularidade abre espaço para a liberdade de escolha e expressividade. - Eu sou livre para gostar ou não, por exemplo da arte barroca, da mesma forma expressar o que penso, sem medo de ser rejeitado. Pela estrada afora, foram aprendendo sobre o belo no barroco, observando a universa

Notas de Lisboa*

  “O vento, enfim, parou Já mal o vejo por sobre o Tejo E já tudo pode ser tudo aquilo que parece Na Lisboa que amanhece” (Sergio Godinho)   “Vejo esta cidade parada no tempo deve ser saudade a vista que invento” (Pedro Ayres Magalhães – Lisboa Rainha do Mar – Madredeus)   Se eu pudesse levar uma trilha sonora para onde quer que fosse, escutar, ver o mundo por dentro, entranhas fincadas na memória, à maneira de um passante, errante, dono do seu devaneio. À toa o Ser. Um desavisado, já dizia Bergson, em outro canto da vida: o passado expandindo-se no seu presente, permanecendo tão atual, a ação, movimentos dos corpos por noites em Lisboa. E, por dentro, lá se vai manhã que acorda os sonhadores depois da luz, bem antes da salvação dos navios mercantes, sanguinários. Ter o espaço imaginário, as frestas da vida, entre o contínuo movimento, longa viagem do corpo, renasce, tempo penetra, entre lágrimas e riso, lá do alto dos afagos noturnos da cidade que abraça e b

A escuta compreensiva na clínica filosófica*

Ao iniciar essa análise faço um convite a você, caro leitor. Partirmos da noção de singularidade como pressuposto para que possamos, juntos, seguir no progresso deste estudo. De maneira breve a singularidade, na Filosofia Clínica, é um conjunto de fenômenos que compõem o partilhante e sua medida de relação e interseção com o mundo interno, externo e, também, com outras pessoas. O esperado é que o Filósofo Clínico mantenha- se despido de seu juízo e valor pessoal. Por sua vez, essa atitude propicia um ambiente onde aquele que compartilha sua história pode ser conhecido através de seus próprios critérios. A escuta realizada na prática terapêutica prevê a literalidade, ou seja, aquilo que é dito deve ser compreendido e não interpretado. O ser humano singular é o mar por onde o filósofo clínico navega. É dentro das condições apresentadas por este mar que se manifesta a Filosofia Clínica. Articulando os elementos citados acima cria-se uma atmosfera que protege o partilhante. Constitui

Anotações e reflexões de um Filósofo Clínico*

Amanhã, após meses de espera, chega à nossa casa a biblioteca. Foi uma imensa burocracia: dezenas de caixas, milhares de livros, aguardando a autorização para o embarque num contêiner - e depois a longuíssima espera na alfândega no porto de Lisboa. A espera na chegada foi especialmente longa: as caixas com os milhares de livros foram selecionadas pelos agentes da alfândega para uma inspeção detalhada. Afinal, quem, em 2022, gasta (não pouco) dinheiro para carregar uma biblioteca para outro país? Imagino a decepção (ou a felicidade) dos agentes ao descobrirem que não, ali não havia nem traço de contrabando: era somente a mudança de um professor de filosofia. * * * Alguns amigos me criticaram: eu deveria passar a carregar a minha biblioteca num pendrive. Sim, eu entendo: é muito mais barato e prático ter livros digitais. Eles não custam caro, podem ser levados a qualquer lugar sem esforço, não demandam vários cômodos para a sua organização. Todavia, a minha relação com os livro

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