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A senha do Paraiso*



Quando completamos um mês de namoro, Marta pediu a senha de meu celular. Alegou que seu telefone era desbloqueado, não tinha nada a esconder e gostaria de reciprocidade. Foi além, disse que concederia alguns dias para que excluísse conversas e fotos comprometedoras do passado, pois não gostaria de abrir meu aparelho e encontrar outras mulheres me abraçando, mesmo que estes fatos houvessem ocorrido cinco, dez ou quinze anos atrás.

Fui pego de surpresa com este pedido, realizado sem anestesia nem aviso prévio. Aliás, na hora não consegui distinguir se aquilo era um pedido, uma ordem ou brincadeira. Confesso que também nunca havia pensado direito no assunto, mas uma coisa posso afirmar, não gosto de receber ordens, muito menos de uma namorada de trinta dias. Não sabia o que responder, talvez até liberasse a senha, mas imaginava que aquilo deveria ser iniciativa minha.

Pressionado por seu olhar inquisitivo, contestei com a primeira obviedade que me veio à cabeça. Sabendo que meu telefone seria fiscalizado periodicamente, é evidente que se praticasse alguma transgressão, apagaria todas as pistas. Seria perda de tempo ela ficar procurando rastros ou vestígios. Não convencida, contra argumentou advertindo que um dia haveria de me descuidar, então seria pego na malandragem. No entanto, relaxou concedendo-me um prazo maior. Quando completássemos seis meses de namoro, gostaria de receber como presente a maldita senha.

A discussão não parou por ai. Na semana seguinte, comuniquei a Marta que lhe concederia a senha, mas antes gostaria de lhe contar uma história bíblica, o Gênesis. Depois disso, se tivesse vontade, poderia revirar meu telefone ao avesso.

No sexto e último dia da Criação, quando tudo já fora criado e estava em seu devido lugar, o Todo Poderoso criou o homem. Adão tinha inúmeros talentos e virtudes. Não era uma pessoa como nós. Nasceu para ser imortal e viver livre de preocupações, esforços e sofrimentos. Era um ser primariamente espiritual e mantinha uma ligação direta com o Criador. Vivia no Jardim do Éden, o Paraíso.

Mas ainda faltava algo para a plenitude. Uma companheira para Adão. Imprescindível e vital para os planos do universo. Quando este adormeceu, o Todo Poderoso lhe retirou uma costela e criou Eva, sua mulher. A obra agora estava completa, um mundo celestial e primoroso, dois seres perfeitos, com espiritualidade impar, que mantinham uma ligação direta e constante com o Criador.

A tarefa de ambos era cultivar e desfrutar do Jardim, com uma única proibição: não comer do fruto da Árvore do Bem e do Mal. Aparentemente era apenas um mandamento simples, uma única demonstração de obediência, no entanto, menos de vinte e quatro horas após terem sido criados, Adão e Eva sucumbiram à tentação oferecida pela serpente e provaram do fruto proibido. A transgressão não foi um mero erro ou descuido. Tinham uma relação íntima e direta com o Criador que lhes comunicava suas diretrizes. Sabiam exatamente os riscos que estavam correndo. Se comessem do fruto proibido seriam expulsos do Paraíso e perderiam a imortalidade.

O que muitos não sabem, é que a proibição era temporária. Adão e Eva ainda não estavam preparados para conviver com a maldade. Haviam sido criados naquele mesmo dia e só conheciam o bem, o que não significa que o mal já não existisse no mundo. A astuciosa serpente, encarnando a maldade, aproveitou a ingenuidade do casal e habilmente os seduziu.

Morderam o fruto interditado e imediatamente após sentirem seu gosto, perderam a inocência, o bem e o mal se fundiram no interior de seus corpos e se tornaram conscientes da culpa e da vergonha. O Criador cumpriu sua promessa e os expulsou do Jardim do Éden, mas esta não foi a única punição.

Adão foi condenado a tirar da terra, com o suor de seu rosto, durante todos os dias de sua vida, o seu sustento. Acabou a mamata de tudo do bom e do melhor cair do céu. Além disto, ficou determinado que Adão voltaria a se transformar em terra, matéria de onde fora criado. “Havia sido pó e ao pó retornaria”, ou seja, o Criador manteve sua palavra e condenou-os, junto com todos seus descendentes, à morte.

Quanto a Eva, o Criador reservou outros mistérios. Multiplicou os sofrimentos do parto e ordenou que os desejos da mulher a impulsionassem para o marido, que passaria a dominá-la. Queridos leitores, não estou inventando esta passagem bíblica, podem conferir – Gênesis 3:16.

Não parou por ai, o Criador colocou uma relação de amor e ódio entre a mulher e a serpente. A mulher íntegra dominaria a serpente do mal, pisando em sua cabeça, mas quando a cobra fosse mais esperta, esta morderia o calcanhar da mulher, que se submeteria a seu encantamento.

O domínio da mulher pelo marido, o fascínio desta pela tentação e a condenação à morte podem ter várias interpretações. Não é preciso levar o texto ao pé da letra, Adão e Eva não morreram no dia que comeram o fruto proibido, pelo contrário, viveram muitos e muitos anos após terem sido expulsos do Paraíso. Segundo a Bíblia, Adão viveu 930 anos.

O Criador não falhou, tampouco hesitou. A história da humanidade precisava seguir, e o propósito da Criação só iniciou, de fato, quando o casal deixou o Jardim do Éden e começou a ter filhos. Neste exato momento, desencadeou-se na humanidade o processo de morte que acontece com todos nós: ao nascermos, começamos a morrer. Ou, interpretando por outro viés, muitos Joãos e Marias, conseguem viver fisicamente até os noventa anos, mas suas almas morreram lá atrás, aos vinte anos. Quem pode afirmar que ao serem expulsos do Paraíso, Adão e Eva não tenham sido condenados à morte espiritual?

Nesta altura da narrativa, não sabia quanto Marta estava conseguindo associar a expulsão do paraíso com nosso convívio. Não era uma tarefa fácil transplantar o Gênesis para a tecnologia atual e entender que as vezes, a senha do celular, se mal utilizada, pode trancar definitivamente as portas do paraíso.

Precisei ser mais explícito. Expliquei que havíamos completado um mês de namoro, estávamos vivendo como no Jardim do Éden, plenos de expectativas e paixão, fazendo promessas, descobertas e desfrutando o Paraíso aqui na terra. Entretanto, éramos imperfeitos e tínhamos um passado a preservar e um futuro a construir. Não apagaria meu passado da lembrança, tampouco da memória do celular. Da mesma forma, não me atreveria a comprometer nosso futuro bisbilhotando sua intimidade.

Até mesmo no Paraíso existiram regras. Nosso namoro também precisaria respeitar algumas normas de harmonia, intimidade e confiança. Marta teria a escolha de vasculhar ou ignorar conversas e fotos em meu aparelho celular, arcando com as conseqüências de sua curiosidade e invasão de privacidade.
Seis meses se passaram. Marta cumpre religiosamente seu ritual. Antes de dormir, ao invés de rezar, ler um livro ou fazer carinho em seu marido, digita a senha e rastreia sinais de maldade, safadeza, deslealdade ou traição. Um dia vai encontrar. Ou inventar. Marta está casada com outro, bem longe de mim. Cada um tem o paraíso que procura.

*Ildo Meyer
Médico. Escritor. Palestrante. Filósofo Clínico.
Porto Alegre/RS

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