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Anotações e Reflexões de um Filósofo Clínico*

 

Heráclito de Éfeso dizia haver uma harmonia entre os opostos: noite-dia, guerra-paz, fome-saciedade são pares dialéticos. No fundo, cada par corresponde a uma dupla manifestação de uma única realidade. 

Assim é tudo no mundo humano.

Seja na história, na sociedade ou na vida interior de cada um, a todo movimento corresponde o movimento contrário. Somos seres dialéticos: quando caminhamos numa direção, caminhamos também na contra-mão.

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É por isso que, na história humana, todo projeto político leva consigo a sua contradição. Quanto mais se constrói uma sociedade igualitária, mais desigualdades radicais inesperadamente surgem. Quanto mais livre é uma sociedade, mais condicionadora e restritiva, em outro sentido, ela se mostra. Quanto mais alto for um projeto político que se realiza, mais baixa será a miséria que ele produzirá.

Na vida da sociedade também é assim: quanto mais tempo as crianças passarem nas escolas, mais dócil à autoridade será o povo; uma sociedade na qual todas as transações devem ser reconhecidas cartorialmente é uma sociedade profundamente desonesta e corrupta; é onde há mais maldade e sadismo que as religiões florescem com mais vigor.

E em nós a dialética da existência é muito clara: o ciúme é a expressão do sentimento de inferioridade; o consumo exagerado é fruto de um vazio interior; a agressividade que amedronta é o recurso que quem ainda é uma criança apavorada.

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É por isso que todo ocultamento desnuda. Sem que percebamos, o nosso discurso revela os eixos psíquicos em torno dos quais a nossa existência se ordena: discursar contra alguma coisa é, de certo modo, posicionar-se junto a ela, é reconhecer que ela é um centro de interesse do pensamento.

É essa a lição fundamental de Heráclito: o ser e o não-ser constituem um único eixo no Logos. Ao mesmo tempo em que eles são opostos, são também complementares. O amor é amor e ódio, e vice-versa; a guerra é guerra e paz, e vice-versa; entramos e não entramos no mesmo rio; o rio é outro, mas é o mesmo.

Somos o que somos, mas também somos o contrário: cada um de nós é e não é uma multidão.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico.

Teresópolis/RJ

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