Ontem chegando ao hospital assisti uma cena inusitada. Uma garotinha de uns seis anos de idade, sem cabelos devido à quimioterapia, sendo levada na maca hospitalar para o centro cirúrgico.
O que me chamou a atenção não foi
a menininha na cama, foi a mãe da menina, deitada a seu lado. A criança com
roupa de paciente e a mãe com roupa de mãe. Isso não é rotina hospitalar,
somente uma pessoa costuma estar deitada na cama, e quem está deitado, deve
vestir roupa de hospital.
Enquanto a maca circulava pelos
corredores, a mãe lia para a filha um livro de histórias infantis. Sabia que
aquela atitude não era comum dentro de um hospital e que as pessoas a olhavam
com estranheza, no entanto, parecia não se importar, estava focada na filha.
Não vou conseguir descrever, não
encontro palavras que expressem a grandeza do altruísmo desta mulher, mas
tentem imaginar. Os olhos da mãe diziam claramente que ela queria estar no
lugar da filha, e faria tudo que estivesse a seu alcance para que a menina não
sofresse. Aquele padecimento me comoveu, havia algo especial pairando naquela
maca, na hora não consegui identificar, mas não foi por acaso que cruzamos.
Para minha surpresa, quis o
destino que fosse eu o anestesiologista daquela menina. Sem hesitar, quebrei o
protocolo. Pedi a mãe que vestisse um avental hospitalar idêntico ao da filha.
Deitei as duas na mesa cirúrgica e fiz de conta que estava puncionando a veia
da mãe para instalar um soro. Até curativo no braço foi feito. Em seguida foi a
vez da menina, que a exemplo da mãe, nada sentiu com a picada da agulha. As
duas olhavam-se com uma cumplicidade admirável.
Pensei que estivesse fazendo um
bem para a menina, só depois me dei conta que talvez o bem maior fosse para a
mãe, deixando-a vivenciar tudo aquilo. De certeza que a mãe sofria muito mais
que a filha.
Na sequência, expliquei que faria
as duas dormirem juntas por alguns momentos para realizar o procedimento e em
seguida acordariam e retornariam para o quarto. Pedi que escolhessem um sonho
bem legal e se cobrissem para não sentir frio. Fizeram uma oração antes de
dormir. Para a menina aquilo tudo era novidade, uma aventura diferente, como no
livro de histórias que a mãe contava minutos atrás. Para a mãe, nem tanto.
Assim que a menina dormiu, pedi a
mãe que esperasse na sala de recuperação e lhe prometi que a filha só acordaria
quando já estivessem juntas novamente. Percebi que para a mãe deixar a filha
comigo e sair da sala cirúrgica era como se estivesse abandonando sua cria. Um
tormento para ela. Expliquei que cuidaria da menina como se fosse minha filha,
e que naquele momento, seria médico e mãe ao mesmo tempo. A conversa não a
consolou como eu esperava, no entanto não havia opção, ela precisava sair.
Enquanto era levada para fora da sala, seus olhos escorriam rios de lágrimas.
Felizmente tudo correu conforme o
esperado, a cirurgia foi um sucesso e a menina passou por este episódio sem
maiores traumas. A mãe, uma guerreira por trás daquele corpo frágil, sorrindo
em meio às lágrimas, sofreu em silêncio escondendo sua dor para não demonstrar
fraqueza.
Dizem que paredes de hospitais já
presenciaram atos de amor e dor muito mais honestos que casamentos em igrejas
ou despedidas em aeroportos ou funerais. Deixei as duas na sala de recuperação
e fiquei de longe observando o despertar da menina. Ao ver a mãe a seu lado,
abraçando-a, abriu um largo sorriso e começaram a conversar sobre os sonhos que
tiveram na aventura da sala cirúrgica. A criança sorria, a mãe agora mais
aliviada também, mas por seus olhos ainda escorriam lágrimas solitárias.
Distante delas, meus olhos também
ficaram molhados. Só então consegui identificar o que estava presente naquela
maca desde o início, quando nos cruzamos pelo corredor. AMOR. Em sua forma mais
genuína. Visível, palpável, grandioso e curador. Nem sempre conseguimos vê-lo
ou senti-lo. Às vezes é preciso que ele bata a nossa porta, grite, esbraveje ou
apareça de uma forma excêntrica para que o reconheçamos.
Obrigado por aparecer quando me
esquecer de ti amor. Apareça sempre. Grite sempre. Volte sempre, ou melhor, não se vá.
*Dr. Ildo Meyer
Médico. Escritor. Mágico.
Filósofo Clínico. Autor da obra: "Visita de Médico - uma aproximação entre Filosofia Clínica e Medicina". 2016. Publicada na coleção de Filosofia Clínica da Editora Vozes/RJ. Dentre outras.
Porto Alegre/RS
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