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Anotações e Reflexões de um Filósofo Clínico*

Toda e qualquer leitura de mundo seja pelos gestos ou pelas palavras de autoria alheia a nós mesmos, serve, antes de mais nada, para nos conhecer. Toda leitura nos torna mais conscientes porque tende a nos fazer tocar mais profundo para dentro do nosso íntimo. E curiosamente, quando cremos estar lendo para fora de nós mesmos, podemos ter a impressão de que estamos captando fragmentos de fenômenos peculiares demais e com os quais por alguma razão nos identificamos; seja para dor ou seja para o prazer. Já quando cremos estar lendo para dentro de nós mesmos, apesar das dificuldades de encontrar palavras para traduzir as sensações, parece certo se tratar sempre de um ato de coragem que nos revela e nos transforma pelo menos em versões mais claras e transparentes daquilo que somos de fato agora. Ler é inevitavelmente uma via de mão dupla mesmo quando começa por fora e termina por dentro ou vice versa. A leitura é de alguma maneira, um grande antídoto para a superação de cren

Fragmentos Filosóficos, Clínicos, e algo mais*

"A que acontecimentos ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes ?" "O mundo é coberto de signos que é preciso decifrar, e estes signos, que revelam semelhanças e afinidades, não passam, eles próprios, de formas da similitude. Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida ans coisas" "A vida não constitui um limiar manifesto a partir do qual formas inteiramente novas do saber são requeridas. Ela é uma categoria de classificação, relativa, como todas as outras, aos critérios que se fixarem. E, como todas as outras, submetidas a certas imprecisões desde que se

Anotações e Reflexões de um Filósofo Clínico*

Ao lermos os diários e as correspondências de líderes políticos, de militares do alto escalão e de escritores e intelectuais, percebemos que os grandes acontecimentos da História quase nunca são públicos - ao contrário: quase sempre são eventos privados, frutos de encontros, sentimentos pessoais e circunstâncias que em nada prenunciavam aquilo que posteriormente viria a ser reduzido a "fatos históricos" descritos em manuais. * * * A História escrita, em todas as suas escolas, é a História institucional. Ela captura somente a superfície dos eventos. Mas é incapaz de descrever o tecido de relações pessoais e percepções privadas que rege os caminhos da humanidade. * * * Para completar: com uma grande freqüência, as personagens principais e os verdadeiros eventos decisivos da História permanecem completa e irremediavelmente subestimados, desprezados ou ignorados. * * * Dito isso tudo, resta a conclusão à moda de Vaihinger: praticamente tudo o q

Fragmentos Filosóficos, Libertários, e algo mais*

"O que o deus Cronos não perdoa às vanguardas é o frescor e a espontaneidade de suas extravagâncias" "Território escorregadio de questionamento e de reinvenções do novo, tela de fundo dos avanços ou retrocessos da sociedade, a modernidade cristaliza os processos sistematicamente feitos aos níveis social, político, estético. (...) a modernidade é uma espiral de contradições, de esperanças, de decepções e de reinícios" "A substância do novo das vanguardas sempre foi polimorfa e polissêmica. É constituída por aquelas mensagens transmitidas com violência pelos manifestos e pelas linguagens transgressivas" "(...) cada instante é único e faz com que apareça um novo estado do mundo" "Nesse polimorfismo literário, as vanguardas se destacam por marcarem, cada vez, o advento de uma linguagem nova. As vanguardas que reescrevem e perlaboram a modernidade também garantem sua sobrevivência para além de suas descontinuidades"

O Editor de Romances - (fragmentos)*

“Minha pele se tornara um palimpsesto de sensações fugazes, e cada camada trazia a impressão de quem eu era.”                                                                                                                                                                                           Paul Auster Eu vi a melancolia nesses anos todos rondando a casa dos sonhos, dos dias, as noites turvas, os namoros da juventude. Da adolescência mais atrás, minha infância. Mas nunca vi com tanta clareza como nesses últimos anos. Saltimbancos divertindo os outros. Padres salvando almas. Jamais vi flores mortas sendo recolhidas dos parques por assassinos. Nunca sonhei com tantas ideias mortas e inúteis como nesses últimos anos. Parece o fim. Mas não finda o fim das coisas, e tudo que já se esgotou pelas próprias mãos recomeçou em mãos alheias sem que eu menos pudesse esperar. Eu penso no primeiro amor dos meus 14 anos, nas primeiras ações dos primeiros dias de como a tristeza e

Fragmentos Filosóficos, Libertários, e algo mais*

"(...) todos grandes descobridores no terreno do sublime (...) com misteriosos acessos a tudo que seduz, atrai compele, transtorna, inimigos natos da lógica e da linha reta, cobiçosos do que seja estranho, exótico, enorme, torto, contraditório" "(...) Todos os deuses até aqui não foram demônios rebatizados e santificados ?" "Todo mundo elevado requer que se tenha nascido para ele; ou melhor, que se tenha sido cultivado para ele: direito à filosofia - no sentido mais amplo - obtêm-se apenas em virtude da ascendência, os ancestrais, o sangue decide também aqui. Muitas gerações devem ter trabalhado na gênese do filósofo; cada uma de suas virtudes deve ter sido adquirida, cultivada, transmitida, incorporada, e não apenas o passo e curso ousado, leve e delicado de seus pensamentos, mas sobretudo a disposição para grandes responsabilidades, a elevação de olhares que dominam (...)" "(...) Será o maior aquele que puder ser o mais solitário, o

Essência e Acidentes*

Não é raro encontrar quem descredencie a filosofia como capaz de auxiliar em questões do cotidiano. Há quem postule que as “fórmulas abstratas e universais” dos livros de filosofia não resolvem problemas de cunho prático. Considerada mais uma abordagem filosófica, a filosofia clínica sofre pelos preconceitos de quem sequer se deteve por um tempo em sua análise. Diante disso, podemos levantar alguns aspectos que valem a pena serem pensados.   Aristóteles e Platão, além de suas divergências, chegavam num acordo acerca do “objeto” de conhecimento: o mundo sensível é constituído pelo devir. O Estagirita apontou para um processo de abstração do sensível que, a partir da suspensão dos acidentes, tornava-se possível pensar a essência. Assim, ficou possível pensar o homem para além dos homens particulares em suas diversas diferenças. Seu mestre formulou as Ideias como instância na qual se encontravam as formas puras das coisas concretas que, por sua vez, são imagens imperfeitas da conc

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"Cada conclusão faz parar o pensamento. Como nos livros de Agatha Christie: resolvido o crime, nada sobra em que pensar. E não adianta ler o livro de novo. Quando o pensamento aparece assassinado, pode-se ter a certeza de que o criminoso foi uma conclusão" "Recorda Valéry: 'Que somos nós sem o socorro daquilo que não existe?'" "(...) A verdade é underground, clandestina, subversiva (...)" "Os poetas buscam as palavras que moram no silêncio" "Palavras de ordem não toleram as brumas, pois é lá que moram os sonhos. Luminosidade total para tornar impossível sonhar. Pois os sonhos são testemunhos de que a alma se recusa a se tornar um pássaro engaiolado" "(..) Tinha de ser uma palavra mágica, pois ela tinha de ter o poder de trazer à existência aquilo que não existia" "(...) Somos a Virgem engravidada pela Palavra que vem com o Vento (...) Os poetas têm estado repetindo isso o tempo todo. N

A pretexto de jardins***

                                                   Existe uma fonte extraordinária em que a obra de arte decaída se encontra. Nela é visível o apelo silencioso das raridades. Nalgumas pode se notar a exuberância dos contornos, em outras a raiz mergulha na terra em busca de proteção. Ainda àquelas a lançar sementes na brisa passageira. Quando muito próximo pode significar conviver com os espinhos uma da outra. Os sinais descrevem nuances de uma estória em que antes e agora se integram, fazendo a pétala renascer, se alternando nas estações. Sua essência plural realiza uma poesia sem palavras nesses espelhos da natureza. Existem jardins com uma história de descuidos, maltratados uma vida inteira. Ao vivenciar alguma forma de atenção, carinho, perseguem o subsolo de si mesmos. Nesse sentido, desacostumados à luz do sol, num movimento de quase semente, se refugiam nas sombras conhecidas, cercam-se de muros, paredes de difícil acesso. O dom da jardinagem conhece a lingua

Fragmentos Poéticos, Filosóficos, e algo mais*

"Quintana foi um urbano auto-exilado, fora dos padrões tradicionais. Vivia na cidade, gostava dela, amava-a. No fundo, porém, não se interessava por ela. Queria uma cidade de outros tempos, arcaica, feita de lampiões, de solares, da cacimbas em pátios e de goiabeiras junto aos galinheiros (...) urbano à sua moda, inclassificável (...) um dos indivíduos mais cosmopolitas que viveram em Porto Alegre" "(...) um poeta particularmente puro como Mario Quintana custou a ser entendido. A maioria das pessoas pensava que ele vivia no mundo da lua. Na realidade, Quintana vivia no mundo da rua, donde extraía a matéria de seus poemas" "Quintana nasceu numa cidade interiorana, dessas que crescem mais em direção à memória do que em direção ao futuro" "O complexo mundo emocional do poeta, mundo submarino, exige escafandros, para que se possam identificar, lá no fundo, na luminosidade esmeraldina de suas águas, os botos cor-de-rosa. Quintana (...) um

Entre bruxas e princesas*

Você já teve contato com bruxas? Tive vários. Algumas usaram a vassoura pra varrer e logo em seguida partiram, outras voaram comigo por muito tempo. Algumas purificaram minha alma, outras lançaram feitiços, outras me encantaram. Talvez você não acredite em bruxas, mas que “las hay, hay”. Antigamente eram queimadas vivas, hoje a era das fogueiras acabou, e as netas daquelas que sobreviveram estão mais vivas que nunca, espalhadas por todos os cantos, queimando todas as regras. Numa pesquisa aparentemente inocente, pediram a vários homens que fizessem uma escolha delicada. Suas companheiras seriam doze horas por dia   bruxas e nas outras doze horas, princesas. Metade do dia elas teriam pele enrugada, cabelos desalinhados, mau cheiro, verrugas no nariz, falta de dentes, comportamento estranho, marcas de nascença, cicatrizes e tudo mais que caracterizasse uma bruxa clássica. Na outra metade teriam pele sedosa, cabelos lindos, bem tratados, corpos esculturais, olhos da cor azul p

Fragmentos Filosóficos Clínicos, Reflexivos, e algo mais***

"Neste capítulo, tentarei demonstrar que atualmente a noção de doença mental é usada principalmente para obscurecer e invalidar, por meio de explicações, os problemas das relações pessoais e sociais; e que a noção de bruxaria foi usada do mesmo modo no final da Idade Média" "(...) a visão de que as chamadas doenças mentais são mais idiomas do que doenças não foi ainda adequadamente articulada, nem suas implicações totalmente apreciadas" "(...) A eterna frustração dos psiquiatras e psicoterapeutas vem, portanto, do simples fato de que em geral eles tentam ensinar novas línguas a pessoas que não têm o menor interesse em aprendê-las" "O simbolismo representativo presta-se à expressão dos problemas ditos psiquiátricos, porque eles dizem respeito a dificuldades que são, por sua própria natureza, experiências humanas concretas. Os seres humanos não sofrem de complexo de Édipo, frustração sexual ou ódio reprimido, como abstrações; eles sofre

Envelhecer*

“Quando eu fico, como hoje, mexendo nesses velhos cartões-postais, percebo que de repente tudo se misturou, se confundiu.”                                                                             Danilo Kiš A extensão dos meus propósitos por linhas que escrevo a vida, meu nome. É por acrescentar que faço o viver sem deixar de ler o todo do meu nome, escrevo meu tempo.  É como se eu tivesse saído do minimalismo da juventude, e nesse tempo ter aprendido a usar todo o meu corpo em nome por extenso para filosofar sobre o umbigo. O meu nome não esquece a vida, alia o Nada ao Tudo, deixa para trás a dor e reinventa as cores. Compõe a música imaginária em todas as letras para escrever no muro o nome do nome.  Meu nome não teme o fim, rompe a linha da vida, avança para além do pequeno lugar rumo ao desconhecido. Meu nome é um viajante que precisa soletrar para compreender sua língua amolada em nomes marcados no fio metal do tempo. *Prof. Dr. Luis Antonio Paim Gomes Filós

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