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Reflexões e anotações*



Amigos, eu entendo bem a dificuldade de percebermos os nossos próprios pontos cegos. A ignorância, essa nossa companheira inseparável, é difícil, porque se esconde na nossa sombra: como dizia aquele filósofo francês, todo mundo (inclusive este que lhes escreve) quase sempre se considera perfeitamente dotado de bom-senso e da capacidade de perceber os próprios enganos - e, principalmente, os enganos alheios...

* * *

Eu vivo da palavra falada e escrita. Vejam, amigos, que curioso: no momento em que estou trabalhando, as frases e os parágrafos me parecem muito bem construídos. Reviso uma, duas, três vezes o conjunto. E fico satisfeito.

Dez minutos depois, passo os olhos novamente. Um pouco envergonhado, começo a notar as repetições, as cacofonias, as falhas de pontuação, as proposições ambíguas. Corrijo. E novamente fico satisfeito.

Meia hora depois, leio de novo - e me envergonho novamente. Reescrevo algumas passagens, elimino outras. Satisfeito de novo.

Até rever o trabalho no dia seguinte, quando a vergonha novamente me assalta...

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Digo isto para ilustrar que a ignorância é difícil porque não percebemos quando somos ignorantes. Se temos dificuldade com a nossa própria linguagem, é evidente que será muito difícil reconhecemos a nossa ignorância a respeito do contexto, da experiência e dos estudos presentes na linguagem do outro alguém; em vez de recebermos a narrativa diferente da nossa com atenção amorosa, reconhecendo os vazios da nossa referência interpretativa e deixando o espaço para que o outro os preencha - ou não -, fazemos justamente o contrário: preenchemos os espaços com a nossa própria estrutura de pensamento, e culpamos o outro alguém quando assim o quadro do seu discurso nos parece desarmônico, pueril ou odioso. Mas os responsáveis por essa interpretação detestável somos nós mesmos - nós e a nossa quase inevitável cegueira em relação àquilo que ignoramos.

* * *

Não existe antídoto para a nossa ignorância. Ela é parte da condição humana. Jamais conheceremos tudo o que queremos conhecer; e nunca teremos acesso ao pensamento, à história, ao sentimento do outro senão por intermédio da linguagem, essa fonte de confusão infinita.

Amigos, não existe antídoto para a nossa ignorância, mas existe antídoto para o ódio em relação ao outro alguém que diz aquilo que nos parece inaceitável. O antídoto é a aceitação da inevitabilidade dos aparentes vazios e da aparente incompletude do discurso alheio. É o abandono da soberba intelectual - da crença de que somos capazes de capturar por completo o sentido dos outros dizeres, da ilusão de que as asas da nossa coruja podem abraçar as asas da coruja do outro alguém. O antídoto para o ódio à diferença é a compreensão de que simplesmente nós não passamos pelos mesmos caminhos por onde o outro alguém passou. E que a caminhada por caminhos diferentes é a própria condição da nossa existência no mundo.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico.
Teresópolis/RJ

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